#CADÊ MEU CHINELO?

domingo, 17 de agosto de 2014

[a vida como ela noé] O HOMEM DA NOITE

:: txt :: Paulo Wainberg ::

Para homenagear Bogart resolvi abrir um bar temático. Após muito meditar, achei que o nome do bar que mais lembraria o grande ator era Humphrey’s e assim raciocinando inaugurei o estabelecimento numa região neutra da cidade cujo único problema era lugar para estacionar.

O bar temático foi um sucesso retumbante na noite da inauguração, graças aos convidados e à boca livre e, também, à frota de táxis que coloquei à disposição dos convidados, ida e volta.

O ambiente era sombrio, lembrando os filmes noir que o ator interpretou, especialmente aqueles em que contracenou com com Lauren Bacal, sua musa eterna e falecida recentemente de causa natural, isto é, de velhice.

Bem ao centro do bar instalei um piano elétrico que durante a noite inteira tocou As time Goes by e uma gravação que dizia, sempre que a música terminava: “Play it again, Sam”.

Do teto caiam, presas com arames, várias bolas redondas de metal para lembrar um filme em que ele era um comandante de destroyer, em plena guerra, que passava o tempo inteiro girando as bolas entre os dedos até enlouquecer e dar ordens absurdas, fazendo o navio enroscar-se na própria âncora.

O top da noite foi a entrada inesperada de um gordo barrigudo, de largos e negros bigodes, que não havia sido convidado, ninguém sabia quem era, que comeu, bebeu todas e, é o que dizem, divertiu-se muito passando a mão na bunda das convidadas, algumas de primeira, outras já caindo, para baixo e para o esquecimento.

A grande confusão aconteceu às cinco da matina, quando um sujeito, diretor de uma multinacional de cigarros acendeu um charuto e baforou na cara de Chiquita Lima e Cordeiro Silva, namorada do colunável Hans Hans de Hans Terceiro, que foi tomar satisfação e tomou um soco na cara.

A briga generalizou-se e quando a Brigada chegou, não restava Humphrey sobre Bogart.

Apesar de tudo, a inauguração foi um sucesso, ninguém no hospital, ninguém preso por consumo de drogas, ninguém foi de ninguém e um acordo com o delegado me custou caro, mas ele aceitou parcelamento.

Nos dias e semanas seguintes, o Humphrey’s foi afundando, afundando, ninguém entrava lá, só pedestres que, como se sabe, consomem pouco e ainda exigem regalias.

Foi quando o gordo barrigudo, de largos bigodes apareceu e me propôs comprar o ponto.

Aceitei, embora o preço dele fosse um tanto alto, mas paguei assim mesmo, louco para me livrar da coisa.

Semana passada passei por lá e vi que onde existia o Humphrey’s agora havia uma sapataria. Um grande cartaz colorido anunciava o nome da nova loja:

AO CALO.

E foi assim que encerrei minhas atividades como homem da noite.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

[nem te conto] BALA


:: txt :: Bruno Azevêdo ::

  Nunca levei um tiro, mas a bala, seu barulho, seu formato de pica necrosada, o barulho que ela faz ao sair e o estrago ao entrar fazem parte do meu imaginário e da minha formação como fazem o amor romântico e as boas prendas para a maioria das meninas.
A bala é uma coisa linda, e aprendi a admirar seu poder de decisão, e sua distância. Afinal, era a terra da pexeira e um corte fundo, uma xuxada ou uma queda (e quedas me quebraram dois braços e uma perna) seriam causas mais prováveis de parar no hospital Djalma Marques, o Socorrão.
Eu não pensava na bala como uma possibilidade concreta, mas fazia shurikens com tampas amassadas de refrigerante e atirava loucamente no guarda-roupas de casa, e imaginava lasers e phasers de cabos de vassoura e pedaços de ripa.
Não tinha a bala como uma possibilidade, nem Rambo defumando as costelas pra cauterizar um balaço tinha concretude. Era o fogo ali que amedrontava, não a bala, que essa, no mundo maniqueísta da ficção “pra macho” que eu consumi avidamente sempre pega de raspão nos homens de bem. No Tex não deve ter pego nem assim.
Já ouvi tanto barulho de tiro virtual e já atirei tanto em videogames que me vejo incapaz de distinguir, no meio dos barulhos do mundo, o que deve ser efetivamente um estampido de pólvora comprimida -- nos gibis é sempre bang, mas bala de verdade não é onomatopeia --; foi mal, Black Alien, mas é assim pra mim.
Não conhecia ninguém que morreu de tiro até muito tarde na vida, e a experiência da bala só veio mesmo recentemente, pelo processo imaginativo da escrita -- matar em papel é bem real pra mim -- e pela percepção do tiro profissionalizado enquanto tradição local, a bala construindo um arremedo de lugar, costurando como a Thompson do Dick Tracy do MegaDrive. A bala começa a se aproximar, a ter cheiro, nome, rg, afetividade.
Até que me apontaram um trezoitão.

  Achei engraçado da primeira vez, e pensei, enquanto o sujeito subia a ladeira com algo que agora ela dele por direito, dizendo que me mataria se eu fosse atrás dele: “tem gente que leva as coisas muito à sério”. Nas vezes seguintes já não teve tanta graça, porque você se toca que é só aquele cara atirar e pronto, algo muito especial pode acontecer; vá lá que tem uma curiosidade da experiência da violência, que chega nessa idade como a experiência do sexo era urgente na puberdade, “como é que é isso de verdade?”, ao menos seria bom pra me lembrar, como disse o John, que todo esse sangue que vejo por aí, está por aqui também.
Mas não a curiosidade da experiência domestica da violência, que há mil bandêids espalhados pela casa. E se um desses caras tivesse atirado? A bala saindo do papel, da tela, da caixa de som. Será que a dor impede ou é parte da experiência? No que se pensa? A consciência posta num ponto fudido da anatomia ou expandida através dele? Penso que gostaria de ler relatos de gente que levou tiro, mas isso é também uma traição, o tiro de um não deve servir pra outro.
Daí você vira um Owen Sack, do Dashiell Hammet, um sujeito capaz de formular e reformular a própria vida pela possibilidade de ser alvejado. Era a bala que dizia pronde Owen ia e o que ele ia fazer. O medo de tiro era o medo mesmo de viver, de experimentar seu tempo, e qualquer desentendimento pra ele era motivo pra mudar de cidade.

  Até que lhe meteram um balaço e ele alcançou algum tipo de momento crucial.
O desejo de não levar virou a punção de atirar. “Preciso dar muito tiro”, ele emendava, muito tiro, muito tiro, que se as balas voam como borboletas, vá lá, não adianta de muita coisa de encazular.
A se você engole essa fácil é como se engolisse uma bala. Volta-se prum tipo de "ficção de macho" com patrocínio estatal.

A pergunta já não é quem vai levar a próxima bala, mas quem vai começar a atirar.

domingo, 3 de agosto de 2014

[nem te conto] TER DE ACREDITAR

:: txt :: Carlos Castañeda ::

- Lembra-se da história que você me contou uma vez a respeito de uma amiga sua e os gatos dela? - perguntou, com displicência.
Ele olhou para o céu e encostou-se no banco, esticando as pernas. Pôs as mãos atrás da cabeça e contraiu os músculos do corpo todo. Como acontece sempre, seus ossos estalaram alto.
Ele se referia a uma história que eu lhe contara um dia sobre uma amiga minha que encontrou dois gatinhos quase mortos dentro de uma secadeira, numa lavanderia automática. Ela os reanimou, e, com muitos cuidados e ótima alimentação, criou-os até eles virarem dois gatos gigantescos, um preto e um avermelhado.
Dois anos depois ela vendeu a casa. Como não podia levar os gatos e não conseguisse encontrar outro lar para eles, nas circunstâncias só o que podia fazer era levá-los para uma clínica veterinária e sacrificá-los.
Ajudei-a a levá-los. Os gatos nunca tinham entrado num carro; da procurou acalmá-los, mas eles a arranharam e morderam, especialmente o avermelhado, que ela chamava de Max. Quando afinal chegamos à clínica, ela levou primeiro o gato preto; pegando-o no colo, e sem dizer uma palavra, ela saltou do carro. O gato brincou com ela, dando-lhe patadas delicadas enquanto ela abria a porta de vidro para entrar na clínica.

Olhei para Max; ele estava sentado no banco de trás. O movimento de minha cabeça deve tê-lo assustado, pois ele pulou para debaixo do assento do motorista. Fiz o assento deslizar para trás. Não queria pôr a mão embaixo, de medo que o gato me mordesse ou arranhasse minha mão. O gato estava deitado dentro de uma depressão no fundo do carro. Parecia muito agitado, sua respiração, ofegante. Ele olhou para mim; nossos olhos se encontraram e fui dominado por uma sensação de opressão. Alguma coisa se apoderou de meu corpo, uma forma de apreensão, desespero, ou talvez constrangimento por tomar parte no que estava ocorrendo.
Senti uma necessidade de explicar a Max que a decisão fora de minha amiga, e que eu só a estava ajudando. O gato ficou me olhando como se entendesse minhas palavras.
Olhei para ver se ela já vinha de volta. Eu a via através da porta de vidro. Ela estava falando com a recepcionista. Meu corpo teve um choque estranho e automaticamente abri a porta do carro.
"Corra, Max, corra!", disse eu ao gato.
Ele saltou para fora do carro e deu uma corrida para o outro lado da rua, o corpo rente ao chão, como um autêntico felino. Aquele lado da rua estava vazio; não havia carros parados e eu via Max correndo, junto à sarjeta. Ele chegou à esquina de uma grande avenida e depois se meteu por um cano de esgoto.
Minha amiga voltou. Contei-lhe que Max tinha fugido. Ela entrou no carro e nós fomos embora sem dizer uma palavras.

Nos meses que se seguiram, o incidente passou a ser um símbolo para mim. Imaginei, ou talvez tivesse visto, um brilho estranho nos olhos de Max quando olhou para mim antes de saltar do carro. E acreditei que por um momento aquele bichinho de estimação, castrado e obeso e inútil, tornou-se um gato.
Eu disse a Dom Juan que estava convencido de que, quando Max correu para o outro lado da rua e mergulhou no esgoto, o seu "espirito de gato" estava impecável, e que talvez em nenhum outro momento de sua vida o seu "gatismo" fora tão evidente. A impressão que o incidente deixou em mim foi inesquecível.
Contei a história a todos os meus amigos; depois de contá-la e recontá-la, minha identificação com o gato tornou-se muito agradável.
Achei que eu era como Max, mimado demais domesticado em muitos sentidos, e no entanto não podia deixar de pensar que havia sempre a possibilidade de um momento em que o espírito do homem poderia apossar-se de todo o meu ser, assim como o espírito de "gatismo" se apossou do corpo flácido e inútil de Max.
Dom Juan gostara da história e tecera alguns comentários sobre ela. Dissera que não era assim tão difícil deixar que o espírito do homem fluísse e se apossasse; mas que mantê-lo era coisa que somente um guerreiro poderia fazer.

- O que é que tem a história dos gatos? - perguntei.
- Você me disse que acreditava que se está arriscando, como Max - disse ele.
- Acredito nisso, sim.
- O que estive tentando dizer-lhe é que, como guerreiro, você não pode simplesmente acreditar nisso e deixar a coisa correr. Com Max, ter de acreditar significa que você aceita o fato de que a fuga dele pode ter sido uma explosão inútil. Ele pode ter saltado para o esgoto e morrido instantaneamente. Pode ter-se afogado ou morrido de fome, ou pode ter sido devorado pelos ratos. Um guerreiro considera todas essas possibilidades e depois resolve acreditar de acordo com suas predileções íntimas. Como guerreiro, você tem de acreditar que Max conseguiu salvar-se, que ele não apenas fugiu, mas que manteve seu poder. Você tem de acreditar nisso. Digamos que sem essa crença você nada tem.

A distinção tornou-se muito clara. Achei que eu realmente tinha preferido acreditar que Max sobrevivera, sabendo que ele estava levando a desvantagem de uma vida inteira de mimos e bons tratos.
- Acreditar é fácil - continuou Dom Juan. - Ter de acreditar é outra coisa.
Neste caso, por exemplo, o poder lhe deu uma lição esplêndida, mas você preferiu só usar a metade dela. Se você tem de acreditar, porém, tem de utilizar o fato todo.
- Entendo o que quer dizer - disse eu.
Meu espírito estava num estado de lucidez e achei que estava entendendo os conceitos dele sem esforço algum.
- Acho que você ainda não entendeu - disse, quase cochichando.
Ele me ficou fitando. Sustentei seu olhar por um momento.
- E o outro gato? - perguntou ele.
- Hem? O outro gato? - repeti, involuntariamente.

Eu esquecera a respeito. O meu símbolo girava em tomo de Max. O outro gato não me interessava.
- Mas interessa, sim! - exclamou Dom Juan, quando exprimi meus pensamentos. - Ter de acreditar significa que você também tem de explicar o outro gato. O que saiu lambendo as mãos que o levavam a sua execução. Aquele foi o gato que se dirigiu para a morte, confiante, cheio de seus conceitos de gato. Você acha que se parece com Max, de modo que já se esqueceu do outro gato. Nem sabe o nome dele. Ter de acreditar significa que você tem de considerar tudo, e antes de resolver que você se parece com Max, você deve considerar que pode parecer com o outro gato; em vez de fugir para salvar a vida e se arriscar, pode estar caminhando feliz para seu destino, cheio de seus conceitos.

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