#CADÊ MEU CHINELO?

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

[copyleft] JAMAL JUMA

Porto Alegre - Jamal Juma é um ativista que todos os que fazem parte do mundo do Fórum Social Mundial, em todos os continentes, conhecem. E admiram. Ele é coordenador de um movimento social de resistência não violenta à ocupação israelense, materializada no Muro de Anexação de territórios palestinos, o que começou a ser erguido há pouco mais de dez anos, na Cisjordânia. Sujeito tranquilo, pacifista intransigente, foi preso em fins de 2009 sob a acusação (ou seja, a falta dela) de que estaria plantando oliveiras e liderando marchas de protesto contra o Muro. Se tem alguma evidência do quanto a democracia israelense está corroída, é a prisão de Jamal: mais de dez dias numa sela com vômito e fezes, sem acusação formal, sem processo, pelo fato de ser um pacifista, isto mesmo, de resistir sem violência. A sua libertação se deu graças à pressão internacional mobilizada por Maren Mantovani, ativista italiana e coordenadora de relações internacionais do Stop The Wall, que mora em Ramalah há dez anos. Foi preciso que sete embaixadores interviessem no Knesset, o parlamento israelense, para obrigar Israel a libertar o ativista.

Em janeiro de 2010, num vídeo, Jamal cumprimentou os participantes de uma das edições do FSM, em Porto Alegre . Ele tinha, então, acabado de sair da prisão. Estava abatido, mas sorridente. Nos Fóruns anteriores, ele parecia ainda mais otimista. Defendia que a única saída para os problemas oriundos do expansionismo sionista era a retomada da solução de um estado para dois povos, uma bandeira pacifista originária dos partidos comunistas europeus, na década de sessenta.

Ontem, aqui em Porto Alegre, Jamal parecia mudado. Ele chegou depois de nossa longa conversa com Ronnie Kasrils, sentou-se à mesa e começou imediatamente a falar. Disse que as coisas estavam muito piores, na região, que tinha havido recrudescimento, que Israel seguia de maneira incontrolada com os assentamentos, que a população estava sem esperanças. Perguntei-lhe sobre as expectativas para amanhã (hoje, dia 29/11), quando a Autoridade Nacional Palestina apresentará o projeto de reconhecimento da Palestina como estado observador, na Assembleia Geral das Nações Unidas, e tudo está a indicar que será reconhecida como tal.

“Não tenho expectativas. Não vai mudar nada. Não significa coisa alguma em relação à ocupação e ao muro. E o problema é a ocupação, esse é o maior dos problemas. A aprovação na ONU não vai mudar isso. A ONU fracassou, a comunidade internacional fracassou conosco”. Perguntei-lhe o que pensava sobre as declarações dos membros da diplomacia do Fatah, de que esse reconhecimento seria um primeiro passo para que Israel recue para as fronteiras da linha verde (1967), e ele foi enfático: disse que não acreditava nisso, que uma solução diplomática a partir da comunidade internacional, e não a partir da sociedade civil palestina, não iria demover Israel de sua política expansionista.

Não fiz a pergunta que gostaria de ter feito: a sua posição sobre a solução de dois estados mudou? Agora você defende dois estados, e não mais um só estado? Jamal tem razão em não responder a essas perguntas. “Eu estou aqui para discutir as condições de qualquer debate sobre estado, diplomacia, ONU, Lei Internacional, que Israel não cumpre, mesmo. Estou aqui para falar do que há de mais fundamental, que é o reconhecimento dos direitos do povo palestino”, disse Jamal, em tom grave.

Fracassos da diplomacia, intifadas e expansionismo israelense

Se o movimento diplomático não trará frutos quanto à ocupação e se a população está sem esperanças, sobretudo depois deste último ataque israelense a Gaza, não estaríamos diante de uma terceira intifada? Qual o risco de uma terceira intifada e qual seria a diferença desta intifada em relação às outras? A resposta veio na hora:

“Já estamos caminhando para a terceira intifada, é inevitável isso. A população não aguenta mais. Pagamos duas vezes o preço da água, que nos é racionada, de uma água que é nossa, de nosso território, que foi usurpado, enquanto os assentados vivem em abundância, alguns com piscina em casa, jogando água fora, pagando menos”. Ronnie Kasrils, que estava sentado ao lado de Jamal, olha para mim e diz: “Isto é muito pior do que o apartheid. E repete: é inacreditável, mas é verdade. Eu vi com meus olhos, quando estive lá, como ministro”. Por que a proposta palestina na ONU é inútil? Jamal responde que o muro separou vilas, cidades, famílias, que desagregou comunidades inteiras, que recortou populações e que não é uma votação na ONU que vai desfazer o dano causado.

Comentei que a segunda intifada ocorreu há pouco mais de dez anos, quando também começou a instalação do muro de concreto em territórios ocupados. Observei a diferença fundamental entre a primeira e a segunda intifada e perguntei qual seria a característica dessa terceira intifada, que ele aponta como provável e de certa forma já em curso. “A primeira intifada foi um levante popular, e as crianças e adolescentes começaram a jogar pedras após a operação ‘quebra ossos’, comandada, preste atenção nisso, por Yitzhak Rabin. Os militares israelenses chegavam perto dos adolescentes e batiam em seus braços, quebrando os seus ossos, com o objetivo único de amedrontar, calar as bocas e aterrorizá-los. Estávamos em 1987 e a resposta não tardou, eclodiu a primeira intifada, que foi um levante sobretudo contra as lideranças locais, palestinas, que nada faziam diante dessa humilhação. A resposta israelense foi brutal: ataques aéreos sobre ruas cheias de gente, indiscriminadamente. Foi uma repressão tão violenta que sufocou o caráter popular das manifestações”.

Daí vieram os Acordos de Oslo, eu disse. Que Israel não cumpriu, porque não desocupou nada e, numa operação deliberada de provocação, Ariel Sharon deu início a segunda intifada, retrucou Jamal, mais ou menos com essas palavras. A segunda intifada foi caracterizada, do lado palestino, pela figura do homem bomba palestino, pelo fortalecimento do Hamas, sobretudo na Faixa de Gaza e pelo consequente enfraquecimento político do Fatah. Do lado israelense, a resposta à segunda intifada foi especialmente brutal: ataques aéreos em resposta às explosões dos homens bomba, sistematização da demolição de casas e da intensificação das construções nos assentamentos e a precarização e discriminação da cidadania dos árabes israelenses, sobretudo os moradores de Jerusalém. Mas o seu aspecto mais duradouro e medonho foi e segue sendo o erguimento do muro do apartheid, como os movimentos sociais palestinos e de solidariedade à resistência palestina passaram a chamar, e que Israel chama de Muro de contenção de terroristas.

São mais de 700 quilômetros de extensão, ladeados por uma faixa de 60 metros de largura, denominada unilateralmente de “zona de exclusão” e incorpora territórios palestinos. Vai sem dizer que, se os governos de Israel dizem a verdade, isto é, que o Muro é uma medida para contenção da infiltração de terroristas e homens-bomba, e não uma medida para anexar à força mais territórios palestinos, não tem justificativa moral para seguir nas construções ilegais, comportando-se como um estado pária em relação à comunidade internacional.

Segundo Jamal, de 2002 para cá, após a construção do muro de anexação, o que houve foi a intensificação dos assentamentos e das construções. Além do incentivo à imigração, do subsídio às construções de condomínios novos em territórios palestinos, um novo elemento foi introduzido, como que para dar suporte ideológico ao expansionismo: líderes, a maior parte rabinos, cujo papel é incentivar a crença teocrática no destino daqueles territórios. “Um dos rabinos, mostrando-se bastante compreensivo, chegou a dizer que os palestinos tinham feito um grande favor ao povo judeu, de cultivar aquelas terras e de prepara-las, para que, quando nós chegássemos, pudéssemos desfrutá-la. Isso foi obra de deus, disse ele”, ironizou o ativista palestino. Perguntei se a percepção de que Israel estaria fomentando uma espécie de “cinturão” de assentados fundamentalistas procedia. “Não”, respondeu. Segundo Jamal, apenas 20% dos assentados são ortodoxos ou fundamentalistas. “O resto são imigrantes do Leste Europeu e da Rússia, que chegaram mais recentemente, empobrecidos e que se tornam cativos do discurso fundamentalista no mais das vezes para manter as suas casas, mas não significa que sejam religiosos. São trabalhadores, que foram incentivados a vir para Israel, a viver em nosso território como se fosse deles”.

O impacto da primavera árabe sobre a terceira intifada

E se a terceira intifada está por vir, se é inevitável que ecloda, qual seria a sua característica, em comparação com as outras duas? Fiz essa pergunta porque, entre a explosão da segunda intifada e a véspera da votação do reconhecimento da palestina como estado observador, na ONU, passaram-se mais de dez anos de Fóruns Sociais mundo afora e isso fortaleceu e disseminou a questão palestina , mobilizando organizações em todos os continentes, o que deu uma outra dimensão ao drama palestino e arregimentou muito mais apoio e solidariedade internacional. Eu perguntei mais ou menos isto: na segunda intifada, os palestinos não tinham vocês. Será que agora, dez anos depois, com a dimensão internacional que a questão palestina ganhou, não mudou nada? “Sim”, respondeu.

“Mudou muita coisa. Mas nós somos um povo que vive sob ocupação há cem anos”, respondeu, altivo. Nós aprendemos muito com a ocupação britânica, com as políticas colonialistas de dividir para conquistar, dos ingleses e, de sessenta anos para cá, com a brutalidade sionista, acrescentou Jamal. Foi como se tivesse me dito que não dá para olhar o drama dos palestinos com base nos últimos dez anos, que não é o movimento por ele também criado, não é a resistência pacífica e não violenta que explicariam, isoladamente, um processo de opressão, renegação e exclusão territorial de um século.

Ronnie Kasrils interrompe Jamal e pede que ele volte a falar do que seria a terceira intifada, de quais seriam, na sua opinião, as suas características. “Acredito que a terceira intifada, sobretudo após esse último ataque de Israel a Gaza, será mais parecida com a primeira, terá um caráter mais popular”. Marco Weissheimer então perguntou se a Primavera Árabe, que resultou na mudança de poder no Egito e na Tunísia, explicaria essa característica, de um levante mais popular, socialmente enraizado. Jamal responde que sim, a mudança no Egito e na Tunísia, que enviaram ministros a Gaza, logo que começou o último ataque israelense à região e ofereceram ajuda aos palestinos que vivem encarcerados a céu aberto, como lembrou, estabeleceu uma mudança importante no estado das coisas.

Os palestinos saíram do isolamento a que o próprio mundo árabe parece tê-los condenado, e isso implica mudanças nas ações políticas e de resistência não violenta, mas Jamal também mudou. Em contraste com o otimismo de Kasrils, o ativista palestino não demonstra otimismo com o dia de amanhã, para os palestinos.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

[agência pirata] ZEROLÂNDIA É UMA ENGANAÇÃO


:: txt :: Wladymir Ungaretti ::

Esta  é a capa da edição de hoje (18/01/2012) de Zerolândia – jornal Zero Hora do RS.  Ótimo que estão reduzidas as fugas do semiaberto. Ótimo que a criança de dois anos foi salva. Mas, nos dois casos,  por um critério JORNALÍSTICO valeria , no caso das fugas, uma pequena nota interna e uma chamada de capa; e , no episódio da criança salva, no máximo, uma foto-legenda.  Essa capa é uma preciosidade, exemplar, da pobreza deste tipo de showrnalismo. O problema que se depara um jornal moderno, pressionado pela necessidade de se manter como um negócio lucrativo, é o de conquistar o interesse do homem comum – e, por interesse,  não estamos nos referindo naturalmente à sua mera atenção passiva, mas à sua ativa cooperação emocional. Se um jornal não consegue inflamar  seus sentimentos é melhor desistir de vez, porque estes sentimentos são a parte essencial do leitor e é deles  que este draga  as suas obscuras lealdades e aversões. BEM,  E COMO ATIÇAR OS SEUS SENTIMENTOS?  No fundo é bastante simples. Primeiro, amedronte-o – e depois tranquilize-o. Faca-o assustar com um bicho-papão e corra para salvá-lo, usando um cassetete de jornal para matar o mostro.  Ou seja, primeiro engane-o – e depois engane-o de novo.  ZEROLÂNDIA É UMA ENGANAÇÃO!!! Continuo sob censura. Ação movida por um funcionário do PRBS com 35 anos de experiência quadrilheira!!! Ganhamos a ação, em todas as instâncias, na esfera criminal. Corre ainda uma ação cível.  Esta capa, como um todo, impõem uma determinada subjetividade. “Fugas do semiaberto”  é um release da Secretaria de Segurança.  RP para quem não sabe é relações públicas. Essa porra não é JORNALISMO!

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

[agência pirata] PELA SOBREVIVÊNCIA DOS IMPRESSOS

 
:: txt :: Dirceu Martins Pio ::

 Como jornalista, torço pela sobrevivência dos impressos. Como leitor, ando meio cético diante dessa possibilidade. Os impressos estão seriamente ameaçados de extinção por inadequação de uso. Atrevo-me a dar – às pessoas que os fazem no Brasil – um rol de dez recomendações. Quem sabe, os leitores poderiam ampliá-las e aperfeiçoá-las. O debate em torno do futuro dos impressos não pode parar. Ei-las:

1. Prestem mais atenção ao clima organizacional. As redações estão traumatizadas pela longa série de ajustes e cortes. Para ter qualidade, a atividade intelectual precisa de um mínimo de segurança e paz. O momento tem de ser o da trégua, do pacto de não agressão. Que tal pensarem numa trégua de pelo menos dois anos?

2. Escolham líderes inventivos e que tenham uma compreensão atual e moderna do mundo digital. Invistam em treinamento para acelerar a capacitação de todas as pessoas para lidar com a inserção no mundo digital das informações captadas para a produção dos impressos.

3. Observem que a configuração urbana e econômica do país passa por grandes transformações. Descentralizem estruturas e deem cobertura aos novos mercados que despontam com grande vitalidade fora dos eixos tradicionais do desenvolvimento. Os novos eixos são celeiros de oportunidades e é natural que uma grande parte das atenções do leitor se volte para eles.

Criatividade e publicidade institucional

4. Fortaleçam a cobertura de economia e negócios e resgatem o espaço que todos já dedicaram ao agronegócio. Esses conteúdos têm mais força nos meios digitais e serão de grande valia na hora de recuperar receitas que migraram do papel para a internet.

5. Invistam em bons pauteiros, que sejam capazes de trazer uma boa quantidade de matérias exclusivas todos os dias. Não acreditem na teoria de que a missão dos jornais em papel é fazer uma boa consolidação do material já divulgado no dia anterior pela internet, pela TV e pelo rádio. O leitor exige muito mais que isto. Quer ser surpreendido, diariamente, pelo seu jornal.

6. Trabalhem, comercialmente, também com muita criatividade. Lembrem-se de que o anunciante compra cada vez menos os produtos de prateleira e compra cada vez mais o taylor made, o produto feito quase de encomenda para ele e que sirva de boas molduras para a sua publicidade institucional.

Não desistam do papel

7. Façam mais jornais e otimizem assim os recursos aplicados na indústria gráfica, na distribuição, na captação de conteúdos.

8. Usem a interatividade dos meios digitais para desvendar o interesse do leitor por informação e façam jornais cada vez mais endereçados.

9. Invistam em reportagem. Os impressos serão cada vez menos o espaço do hard news e cada vez mais o espaço da reportagem e também da análise da tendência da notícia.

10. Insistam com o papel. Não desistam do papel. Ainda não inventaram nada que substitua o papel em suas principais características – portabilidade, credibilidade, documentabilidade, capacidade de reprodução de fotos, ilustrações e cores.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

[agência pirata] JIMI HENDRIX TERÁ ÁLBUM DE INÉDITAS

 :: txt :: Hugo Freitas ::

  Doze músicas inéditas de Jimi Hendrix deverão ser lançadas no mercado fonográfico mundial a partir de março do ano que vem. A informação é do site oficial do guitarrista norte-americano.

Neste trabalho póstumo, coletado entre os anos de 1968 e 1969, Jimi Hendrix sugere direções novas e experimentais, brinca com teclados, percussão e uma segunda guitarra, explorando caminhos diversos de seu lendário trabalho com a guitarra solo.

Segundo a edição norte-americana da revista Rolling Stone, as músicas são da época que o célebre guitarrista estava testando as gravações para o álbum "First rays of the new rising sun". O trabalho é o resultado do que seria o último álbum de Hendrix, gravado nos últimos meses de vida do músico, no começo dos anos 70.

Jimi Hendrix foi consagrado como o melhor guitarrista de todos os tempos. O lendário músico, que morreu em 1970, aos 27 anos, foi o vencedor de uma votação organizada pela Rolling Stone, composta por críticos e músicos, incluídos no júri nomes de peso no cenário musical mundial como Lenny Kravitz, Brian May (Queen), Dan Auerbach (The Black Keys) e Eddie Van Halen (Van Halen).

"Jimi Hendrix extrapolou a nossa ideia sobre o que poderia ser o rock: ele manipulava a guitarra, a 'whammy bar', o estúdio e o palco", disse o guitarrista Tom Morello, da banda "Rage Against the Machine", em entrevista à publicação especializada em rock.

Muitos devem lembrar de Hendrix pela lendária apresentação que ele fez no Astoria, em Londres, no ano de 1967, quando o músico ateou fogo em sua guitarra (uma Fender Stratocaster) no palco, destruindo-a logo em seguida, uma das cenas mais emblemáticas do rock.


                                                                                                                                                               
Veja abaixo a lista dos 10 melhores guitarristas de todos os tempos, segundo a Rolling Stone:

1. Jimi Hendrix
2. Eric Clapton
3. Jimmy Page (Led Zeppelin)
4. Keith Richards (Rolling Stone)
5. Jeff Beck
6. B.B. King
7. Chuck Berry
8. Eddie Van Halen (Van Halen)
9. Duane Allman (The Allman Brothers Band)
10. Pete Townshend (The Who)

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

[agência pirata] VISTA CANSADA


:: txt :: Otto Lara Resende ::

Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa idéia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou.

Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.

Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.

Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima idéia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.

Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.

sábado, 24 de novembro de 2012

[...] O FORNECIMENTO DA SOLUÇÃO: FDS!


:: psy :: Giovani Iemini ::

Oriente-se:
aquilo que não tem conserto, remediado está
pra quê sofrer
se não vai melhorar?

A quem joga lixo na rua, cigarro pela janela e
suja o mundo sem ligar para a natureza:
FODA-SE!

A quem engana, rouba, estupra e mata
pensamentos, direitos ou outras pessoas:
FODA-SE!

A quem legisla em causa própria, julga para si
e executa em seu benefício:
FODA-SE!

Aos exploradores, abusadores e ditadores
que se valem da estupidez e mesquinharia para lucrar:
FODA-SE!

Aos déspotas religiosos ludibriadores
que iludem egocêntricos lacaios , vendilhões de alma
em prol do deus riqueza, poder e ilusão:
FODA-SE!

Ao maleducado, ao grosseiro e ao irritadinho
que destrata, xinga, é impaciente
esquece que estamos na mesma nave
e somos da mesma espécie:
FODA-SE!

A quem usa o animal para servir o homem
e que faz da planta um mero bem de consumo
sem respeitar a vida em todas as suas formas:
FODA-SE!

A quem não evolui com a experiência, não busca aprender
não pensa, avalia, questiona
aceita a hipocrisia e propaga os preconceitos
FODA-SE!

a quem abandona
quem critica por inveja
é generoso por interesse
troca favores ilegais
mente, viola e magoa:
FODA-SE!


A quem desperdiça, a quem desrespeita
a quem estraga e a quem não faz sua parte:
FODA-SE!

A quem não escuta, a quem vai rápido demais
a quem enche o saco:
FODA-SE!

E a quem não se importa:
FODA-SE!

Mas foda-se mesmo
Àquele que não tem conserto
Eis o fornecimento da solução:
FODA-SE!

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

[...] SOBRE O SISTEMA


:: txt :: Eduardo Galeano ::

1. Os funcionários não funcionam. Os políticos falam mas não dizem. Os votantes votam mas não escolhem. Os meios de informação desinformam. Os centros de ensino ensinam a ignorar. Os juízes condenam as vítimas. Os militares estão em guerra contra seus compatriotas. Os policiais não combatem os crimes, porque estão ocupados cometendo-os. As bancarrotas são socializadas, os lucros são privatizados. O dinheiro é mais livre que as pessoas. As pessoas estão a serviço das coisas.


2. Tempo dos camaleões: ninguém ensinou tanto à humanidade quanto estes humildes animaizinhos. Considera-se culto quem oculta, rende-se culto à cultura do disfarce. Fala-se a dupla linguagem dos artistas da dissimulação. Dupla linguagem, dupla contabilidade, dupla moral: uma moral para dizer, outra moral para fazer.


3. Quem não banca o vivo, acaba morto. Você é obrigado a ser fodedor ou fodido, mentidor ou mentido. Tempos de o que me importa, de o que se há de fazer, do é melhor não se meter, do salve-se quem puder. Tempo dos trapaceiros: a produção não rende, a criação não serve, o trabalho não vale. No rio da Prata, chamamos o coração de bobo. E não porque se apaixona: o chamamos de bobo porque trabalha muito.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

[cc] POR UMA SOCIEDADE DIGITAL LIVRE


:: txt :: Richard Stallman ::
:: trd :: Aracele Torres ::

Projetos com objetivo de inclusão digital estão criando uma grande pressuposição. Eles pressupõem que a participação em uma sociedade digital é boa; mas isso não é necessariamente verdade. Estar em uma sociedade digital pode ser bom ou ruim, dependendo se essa sociedade digital é justa ou injusta. Há muitas formas nas quais nossa liberdade está sendo atacada pela tecnologia digital. A tecnologia digital pode piorar as coisas, e irá, a menos que lutemos para impedi-la. Portanto, se temos uma sociedade digital injusta, nós deveríamos cancelar esses projetos de inclusão digital e iniciar projetos de extração digital. Temos que extrair as pessoas da sociedade digital se ela não respeita sua liberdade; ou temos que fazê-la respeitar.

Vigilância

Quais são as ameaças? Primeiro, vigilância. Os computadores são o sonho de Stalin: são ferramentas ideais para vigilância, porque tudo que fazemos com os computadores, eles podem gravar. Eles podem gravar as informações em uma forma pesquisável perfeitamente indexada em uma base de dados central, ideal para qualquer tirano que queira esmagar a oposição.

A vigilância, às vezes, é feita com nossos próprios computadores. Por exemplo, se você tem um computador que está executando Microsoft Windows, esse sistema está praticando a vigilância. Há funcionalidades no Windows que enviam dados para algum servidor. Dados sobre o uso do computador. Um recurso de vigilância foi descoberto no Iphone há alguns meses, e as pessoas começaram a chamá-lo de “telefone espião” (spy-phone). O Flash Player tem um recurso de espião também, assim como a Amazon “Swindle”. Eles o chamam de Kindle, mas eu o chamo Swindle (o trapaceiro), porque ele é feito para enganar os usuários sobre sua liberdade. Ele faz as pessoas se identificarem sempre que compram um livro, e isso significa que a Amazon tem uma lista gigante de todos os livros que cada usuário leu. Tal lista não deveria existir em nenhum lugar.

A maioria dos celulares irá transmitir a sua localização, calculada através de GPS, por comando remoto. A companhia telefônica está acumulando uma lista enorme de lugares que o usuário esteve. Um alemão MP no Partido Verde [correção: Malte Spitz está na esquipe do Partido Verde, não é um politico eleito] solicitou à companhia telefônica os dados que ela tinha sobre onde ele esteve. Ele teve que processar, que ir ao tribunal para obter essa informação. E quando conseguiu, recebeu quarenta e quatro mil pontos de localização por um período de seis meses! Isso é mais que 200 por dia! O que isto significa é que alguém poderia formar um quadro muito bom de suas atividades apenas olhando para esses dados.

Nós podemos impedir que os nossos próprios computadores façam essa vigilância sobre nós se tivermos o controle do software que eles executam. Mas o software que essas pessoas estão executando, elas não tem controle sobre ele. Eles não são software livre, e é por isso que tem recursos maliciosos, como a vigilância. Entretanto, a vigilância nem sempre é feita com os nossos próprios computadores, ela também é feita a distância. Por exemplo, ISP’s na Europa são obrigados a manter os dados sobre as comunicações dos usuários da internet por um longo tempo, caso o Estado resolva investigar essa pessoa mais tarde por qualquer razão imaginável.

Com um celular – mesmo se você puder impedir o telefone de transmitir sua localização GPS, o sistema pode determinar a localização aproximada do telefone, através da comparação entre o tempo em que os sinais chegam em torres diferentes. Assim, o sistema do telefone pode fazer a vigilância mesmo sem a cooperação especial do próprio telefone.

Da mesma forma são as bicicletas que as pessoas alugam em Paris. Claro que o sistema sabe onde você pega a bicicleta e onde você a devolve, e eu tenho ouvido relatos de que ele segue as bicicletas quando elas estão se movendo também. Então elas não são algo em que podemos realmente confiar.

Mas também existem sistemas que não têm nada a fazer com a gente, que só existem para o rastreamento. Por exemplo, no Reino Unido todas as viagens de carro são monitoradas. Os movimentos de cada carro estão sendo gravados em tempo real e podem ser acompanhados pelo Estado em tempo real. Isso é feito com as câmeras que ficam ao lado da estrada.

Agora, a única maneira de evitar a vigilância que é feita a distância ou por sistemas independentes é através da ação política contra o poder aumentado do governo para rastrear e monitorar a todos, o que significa, claro, que temos que rejeitar qualquer desculpa que eles podem dar. Para fazer tais sistemas, nenhuma desculpa é válida – para monitorar a todos.

Em uma sociedade livre, quando você sai em público você não tem garantia de anonimato. É possível que alguém o reconheça e se lembre. E mais tarde essa pessoa poderia dizer que viu você em um determinado lugar. Mas essa informação é pública. Não é convenientemente montada para rastrear a todos e investigar o que fizeram. Coletar essas informações dá muito trabalho, por isso é feito somente em casos especiais, quando é necessário.

Mas a vigilância computadorizada torna possível centralizar e indexar todas essas informações de modo que um regime injusto possa encontrar tudo isso e descobrir tudo sobre todos. Se um ditador toma o poder, o que poderia acontecer em qualquer lugar, as pessoas percebem isso e reconhecem que não devem se comunicar com outros dissidentes de uma forma que o Estado poderia descobrir. Mas se o ditador tem vários anos de registros armazenados, de quem fala com quem, é tarde demais para tomar todas as precauções então. Porque ele já tem tudo o que precisa saber: “OK esse cara é um dissidente, e ele falou com ele. Talvez ele seja um dissidente também. Talvez devêssemos agarrá-lo e torturá-lo.”

Então nós precisamos fazer uma campanha para pôr fim à vigilância digital agora. Você não pode esperar até que haja um ditador e isso seja realmente importante. E, além disso, não é preciso uma ditadura absoluta para começarem a atacar os direitos humanos.

Não seria exagero chamar o governo do Reino Unido de ditadura. Ele não é muito democrático, e uma das formas através das quais ele esmaga a democracia é usando a vigilância. Alguns anos atrás, as pessoas acreditavam estar a caminho de um protesto, elas estavam indo protestar. E foram presas antes que pudessem chegar lá, porque seus carros foram rastreados através deste sistema universal de rastreamento de carro.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

[copyleft] MÍDIA EM CRISE

:: txt :: Laurindo Lalo Leal Filho ::

O próximo dia 7 é o dia “D” na Argentina: “D” de dezembro, de diversidade e de democracia. É o que diz um anúncio veiculado pela TV pública durante os jogos de futebol para lembrar a data da entrada em vigor da nova Lei de Meios Audiovisuais, aprovada há três anos pelo Congresso.

Lembra também que apenas um grupo de comunicação insiste em não acatar a lei, aquele que reúne o conglomerado de veículos encabeçados pelo jornal El Clarin. São 240 Tvs a cabo, 4 Tvs abertas, 9 rádios AM e 1 FM. A nova lei limita a propriedade por empresa a um máximo de 24 licenças para TV a cabo e dez para emissoras abertas de TV e rádio (AM e FM).

O objetivo é ampliar a liberdade de expressão dando voz a setores da sociedade emudecidos pela força do monopólio. A lei estabelece que as licenças de rádio e TV serão destinadas em partes iguais a emissoras estatais, comerciais e de “gestão privada sem fins lucrativos”, algo parecido com as nossas comunitárias.

Ao se negar a cumpri-la o grupo Clarin afronta o executivo, autor do projeto; o legislativo que o aprovou e o judiciário por tê-lo considerado constitucional. Para tanto, além do combate interno, busca apoio internacional como ficou demonstrado na recente reunião da Sociedade Interamericana de Prensa (SIP), realizada em São Paulo.

No encontro, o caso argentino foi apresentado como atentado à liberdade de imprensa, servindo de mote para condenações de outros governos populares, como os da Venezuela, Bolívia e Equador. O curioso é que nesses países a mídia comercial é majoritariamente oposicionista e atua com total liberdade. Basta ver as manchetes e os destaques diários de jornais como o “El Universal”, de Caracas; do “El Universo”, de Guayaquil; “El Diário”, de La Paz e o próprio “El Clarin”, de Buenos Aires e grande parte dos programas de TV.

Mas a vida para os seus proprietários não está mesmo fácil e não é por causa dos governos. A razão está na crescente perda de credibilidade de suas publicações, cada vez mais descoladas dos avanços sociais inegáveis que ocorrem nesses países. A população, ao votar, leva muito mais em conta as melhoras que sente no dia a dia do que as imprecações estampadas nas páginas de jornais e revistas.

Ao lado, é claro, do apoio de novas formas de comunicação, como a internet, capazes de mostrar o outro lado da moeda. E não só ela. Diante do cerco imposto pela mídia comercial, governos populares passaram a impulsionar meios alternativos. Foi a forma encontrada para dialogar com a população sem passar por filtros conservadores.

Reside aí, ao que tudo indica, o maior desespero dos empresários. Em alguns países sua verdade, garantida como única, passou a ser confrontada com outras ideias e informações. Trata-se de um abalo maior do aquele que vem sendo causado pela concorrência dos meios eletrônicos.

Em todos os encontros empresariais da mídia sobram interrogações sobre o futuro dos veículos impressos. Aparecem do dia para noite gurus pagos a preço de ouro para indicar novos caminhos. Falam em “paywall”, o “muro poroso”, onde o internauta acessa os conteúdos até um determinado limite de matérias. Depois disso, se quiser seguir, tem que pagar. A maioria mantém ainda edições impressas e virtuais simultâneas, enquanto outros tomam decisões mais radicais ficando apenas na internet, como fez há pouco a tradicional revista “Newsweek”.

De imediato esse parece ser o maior desafio da mídia tradicional. Mas a médio prazo a questão do conteúdo será o problema mais grave, não importando o suporte a ser usado, seja papel ou tela de computador. Na medida em que os níveis de renda e de escolaridade das populações latino-americanas crescem, suas exigências tornam-se maiores.

Partidarizações em campanhas eleitorais disfarçadas de “jornalismo independente” serão melhor percebidas e refutadas. Assim como erros de informação e pautas descartáveis, tão comuns hoje, desprezadas. Como já começa a acontecer em alguns de nossos vizinhos para desespero dos “donos da mídia”.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

[uíquilíquis] MORTE COLETIVA



O drama dos Guarani-Kaiowá, de Mato Grosso do Sul, chamou a atenção das redes sociais nas últimas semanas, mas não tem comovido as autoridades do estado, conforme demonstram documentos divulgados pelo Wikileaks.

Um comunicado diplomático de março de 2009 relata uma visita do então cônsul norte-americano no Brasil, Thomas White, ao estado. Sua comitiva manteve conversas com o governador André Puccinelli (PMDB) e outras figuras de peso, como o então presidente do Tribunal de Justiça do estado, Elpídio Helvécio Chaves Martins.

O telegrama, de 21 de maio de 2009 e endereçado ao Departamento de Estado dos Estados Unidos pelo Consulado de São Paulo, relata a visita do cônsul-geral e sua equipe ao Mato Grosso do Sul. Segundo o documento, durante os quatro dias de visita, houve reuniões com membros do governo federal e estadual, do setor privado e também com lideranças indígenas.

O telegrama revela que a ideia de que os Guarani-Kaiowá poderão ter mais terras demarcadas é vista com desdém pelas autoridades locais.

“O governador Puccinelli zombou da ideia de que a terra, num estado como o Mato Grosso do Sul, cuja principal atividade econômica é a agricultura, poderia ser retirada das mãos dos produtores que cultivam a terra há décadas para devolvê-la aos grupos indígenas”, lê-se.

Além de Puccinelli, entre os entrevistados estavam o então presidente do TJ-MS, Elpidio Helvecio Chaves Martins e o presidente da Federação das Indústrias de Mato Grosso do Sul, Sergio Marcolino Longen. Do outro lado da disputa, além de lideranças indígenas (os guarani Otoniel Ricardo, Teodora de Souza, Edil Benites e Norvaldo Mendes) foram ouvidos representantes de grupos que fazem a defesa dos direitos indígenas, como o procurador Federal Marco Antonio Delfino e o advogado do Conselho Indigenista Missionário Rogerio Battaglia, entre outros.

O desembargador Chaves Martins, por sua vez, ponderou, na conversa com a delegação norte-americana, que a demarcação de novas terras para os indígenas poderia ter efeitos negativos – ao contrário do que reivindica o movimento indígena.

“Chaves advertiu que as tendências ao separatismo nas comunidades indígenas – concentrando os índios em reservas expandidas – só iriam agravar os seus problemas. Dourados tem uma reserva vizinha, que Chaves previu que se tornará a ‘primeira favela indígena do Brasil’ se persistir a tendência a isolar e dar tratamento separado aos povos indígenas”, relata o cônsul.

Segundo defensores dos direitos indígenas, a reserva de Dourados tem péssimas condições de vida em função da sobrepopulação ocasionada pela falta de terras: são 11,3 mil pessoas vivendo em 3,5 mil hectares.

O então presidente do Tribunal de Justiça também reclamou de “calúnias” que as autoridades locais sofrem dos ativistas, sendo acusadas de “tortura e racismo”, quando estão simplesmente “tentando cumprir a lei”.

Segundo recentes relatórios do Conselho Indigenista Missionário, há mais assassinatos entre indígenas no Mato Grosso do Sul, e particularmente entre os Guarani-Kaiowá, do que em todo o resto do Brasil: entre 2003 e 2011, foram 279 em MS, e 224 no restante do Brasil. O estado também se destaca pelo número de suicídios entre indígenas e outras mazelas, como desnutrição infantil.

Índios deviam “aprender a trabalhar”

De modo geral, avalia o comunicado diplomático, as autoridades locais acreditam que as demandas indígenas pelas demarcações e o retorno ao estilo de vida tradicional “não têm base”.

“Autoridades municipais e estaduais perguntaram como os índios dali reivindicavam ser índios, se eles ‘usam carros, tênis, drogas’. Eles reclamaram dos subsídios públicos dados aos índios, afirmando que eles deveriam ‘aprender a trabalhar como qualquer um’”, relata ainda o telegrama.

O telegrama expressa a conclusão de que não há “solução fácil” para o conflito em Mato Grosso do Sul. Para os norte-americanos, apesar de estarem na posse das terras há décadas, somente 30 a 40% dos agricultores devem ter títulos legais no estado – a conclusão é baseada em uma estimativa do geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, da Universidade de São Paulo.

“Era difícil ver um meio termo potencial no conflito entre índios e agronegócio em Dourados. Apesar de os índios parecerem menos radicais do que, por exemplo, o não étnico Movimento dos Sem-Terra (MST), eles parecem não menos dedicados à sua meta de recuperar suas terras ancestrais, e a oposição dos proprietários parece igualmente arraigada”, avalia o telegrama.

Para os americanos, a situação das terras indígenas em MS e outras partes continuará apresentando desafios à democracia brasileira nos próximos anos. “A única coisa que fica clara é que, sem uma postura mais proativa do governo brasileiro, o assunto não vai se resolver por si mesmo”, conclui outro comunicado de 2008 sobre o tema – intitulado significativamente de “o desastre guarani-kaiowá”.

Nas últimas semanas, uma carta da comunidade guarani-kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay (Iguatemi-MS) deflagrou uma ampla campanha de solidariedade com esse povo indígena com base especialmente na internet. A demanda básica dos Guarani-Kaiowá é pela demarcação de terras: atualmente esse povo, o segundo maior do país, soma 43,4 mil pessoas, vivendo em pouco mais de 42 mil hectares.

Na carta, os indígenas afirmam não acreditar mais na Justiça brasileira e, diante do abandono do Estado e das constantes ameaças de pistoleiros, fazem, em tom dramático, o pedido para que seja decretada a “morte coletiva” dos 170 Guarani-Kaiowá da comunidade.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

[...] POÉTICA

:: psy :: Manuel Bandeira ::

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

sábado, 17 de novembro de 2012

[noéntrevista] OS SERTÕES


:: ntrvst :: Marcos Paulino ::

Criado em 1997 como um espetáculo teatral, em Arcoverde, o Cordel do Fogo Encantado se tornou uma banda que ultrapassou os limites de Pernambuco, apresentando-se inclusive no exterior e colecionando prêmios. Até que, em fevereiro de 2010, Lirinha, um de seus fundadores, anunciou sua saída, pegando os fãs de surpresa.

Após se refazer desse susto, Clayton Barros, outro esteio do grupo, sacodiu a poeira e partiu para um novo projeto, Os Sertões, que está lançando seu primeiro disco. O CD “A Idade dos Metais”, conforme acusa o nome, abusa do sopro, que vai amarrando as faixas. O som, na definição de Clayton, é “uma miscelânea musical, que não obedece a um critério rítmico”.

Sobre esse trabalho, ele conversou com o PLUG, parceiro do Scream & Yell.

Como foi a transição de uma banda bastante conhecida, como o Cordel do Fogo Encantado, para uma que está nascendo?
É como se eu estivesse numa determinada aceleração e tenha dado uma reduzida, trocando de transporte. Foi um hiato curto entre as duas e agora já estou trocando pra uma marcha mais veloz. É uma questão de reerguer-se, de se recolocar no mercado. Tem um tempo de preparação, de desapego. Ficam a saudade e a força que o Cordel me deu. Pude conhecer o Brasil, fazer shows maravilhosos, conhecer grandes artistas. Tive momentos difíceis, mas agora é um momento iluminado, de muitas realizações e muito trabalho.

Até pelo fim inesperado do Cordel, seu nome ainda é muito atrelado àquela banda. Isso te traz uma responsabilidade maior?
Traz uma responsabilidade enorme, e junto a isso um prazer enorme. Nem falo ex-Cordel, porque acho que ele ainda existe em cada um dos integrantes. Não que eu prometa uma volta, porque isso nem se discute ainda. Mas ele ainda está vivo, só adormecido. Tenho o maior orgulho do mundo em carregar essa referência. O Cordel só me deu coisas boas e a oportunidade de dar mais um passo com outra banda.

Sabe-se que você trouxe para Os Sertões algumas composições que não couberam no formato do Cordel. Você já imaginava como seria o perfil sonoro da nova banda?
Fomos descobrindo esse perfil durante a concepção do disco. Meu começo na música vem dos bares, voz e violão. Então a diversidade musical sempre esteve na minha cabeça. Conheci o Rafael Duarte, baixista e produtor do disco, em 2006, e através dele Deco Trombone e Perna (bateria). Surgiu a oportunidade levá-los para produzir um disco do Cordel, que não veio. Mas nisso passamos uns dois anos juntos, o que nos deu um entendimento musical muito maior e um entrosamento muito grande. Quando o Cordel acabou, já havia uma sonoridade entre nós. Fiquei dois meses recluso, fora de Recife. Quando voltei, trouxe as composições que tinha no baú e já marquei um show pra dali a dois meses, pra deixarmos o ócio de lado. Começamos a trabalhar pra compor o restante do repertório nesse prazo. Foi muita ralação.

Você quer manter em Os Sertões a característica tão mar-cante do Cordel de levar elementos teatrais para as apresentações?
Utilizo o máximo de experiência que o Cordel me deu, de entendimento de palco, de luz, de figurino. A imagem da banda é trabalhada pra que não seja associada ao sertão que o Cordel visitou, de Canudos, de Euclides da Cunha. Pensamos em algo mais voltado pro sertão faroeste, “O Coronel e o Lobisomem”, Guimarães Rosa. O disco tem vários capítulos, como se fosse um livro musical. Mas não tem a necessidade de contar uma história, e sim diversas passagens. É um olhar cronista do que a gente observa, e também um tanto autobiográfico, de amor, de saudade, da infância.

A capa do disco faz uma referência a “Sgt. Pepper’s”, dos Beatles. Qual a intenção?
É uma homenagem escancarada e divertida a esse disco. Essa capa dos Beatles foi um divisor de águas na arte sobre o vinil. No ano passado, ela fez 45 anos. Deixei uma série de referências pro estúdio que faria a capa e eles bolaram essa brincadeira. No início, fiquei um pouco relutante, porque poderia ser massacrado como plágio, mas achei muito divertido, porque traz elementos que fazem parte da gente. E também achei totalmente vinil, por isso fizemos um pôster pra pôr dentro do CD. Isso é prenúncio de uma tiragem especial em vinil.

Vocês fizeram uma versão pra uma música do Zé Ramalho e tem a participação do Otto no disco. Isso teve o propósito de dar uma cara mais comercial pro projeto?
Toda vez que componho, tenho a influência de algum antigo hit que eu tenha tocado num bar. Tenho a intenção de fazer uma música que as pessoas possam cantar, e não um som mais cabeçudo. O mercado da música é meu sustento. Mas tem uma questão filosófica nessas regravações. Trazer uma música de Zé Ramalho é uma homenagem a uma figura que sempre toquei muito na noite, que respeito extremamente. Essa música tem um caráter de injeção de ânimo, de superar obstáculos, de seguir adiante. Já a música que Otto canta foi feita pelo Rafael praticamente pra ele. Fizemos o convite e ele topou. Isso fortaleceu nossos laços musicais e de amizade.

Como está sendo a recepção de Os Sertões fora do Nordeste?
Claro que não espero a mesma recepção do Cordel, que também foi galgada passo a passo. Quero passar por essa experiência de novo, mas em um momento diferente. O público é que decide se gosta ou não. Tenho recebido muitos elogios, as resenhas têm sido boas.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

[águas passadas] O FIM DA PEQUENA CAVERNA MÁGICA E OUTRAS HISTÓRIAS


:: txt :: Ramiro Simch ::

 Parecia improvável que aquela pequena caverna mágica - governada por um bem-humorado taberneiro chamado Nani e recheada de carreteiro fumegante, refrigerantes dos mais obscuros fabricantes e balas de banana - um dia fosse tornar-se ponto culminante das terças-feiras de muitos dos que saem à noite em Porto Alegre. Na década de 1990, o Tutti Giorni da minha cabeça era apenas um dos lugares que minha família frequentava com relativa assiduidade.



Mas o tempo passou e a improbabilidade cedeu. A partir dos últimos capítulos dos anos 2000, as paredes cobertas de desenhos e os banheiros desumanos do Tutti alegraram-se novamente com a enxurrada semanal de centenas de boêmios sedentos por cerveja, conversa, riso. O sucesso quase repentino revigorou o alquebrado fluxo de caixa do boteco, e a escadaria da Borges tornou-se a ágora do momento. A esquina da Duque virou uma placa adiposa de saúde cultural.



Os personagens da infância ainda estavam lá: meu tio Edgar Vasques, Santiago, Uberti, Bier e companhia, rodeados de tantos outros. A fauna universitária comparecia em peso, assim como intelectuais, artistas e bebuns de diversas idades e profissões. Havia esperança etílica logo após a segunda-feira, afinal.



É isso tudo que termina - por assim dizer - aqui. Os dedos poderosos dos aluguéis atrasados acabaram por vergar a resistência duranga do barzinho e arrancá-lo dali. O espaço há de se tornar algo menos sujo e barulhento - um escritório de advocacia, acho. Seguirá sua vida sem fedor nem papelão. Até a Zero Hora lamenta. De minha parte, espero só que o Tutti Giorni floresça novamente em outro ponto do Centro. E que novas histórias possam ser construídas.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

[a vida como ela noé] LICANTROPIA


:: txt :: Yuri Sebastian ::


 O reflexo no espelho era o de um lobisomem de olhos laranja escarlate. Presas e garras infernais. Babujava sangue e barro. Um crachá em seu peito dizia "Cão" e em baixo, pequeninho, "dos infernos".

Sorriu. Afinal, não era um qualquer. Era o Satã. Satã na Terra.

Lançava bolas de fogo pelas mãos e fodia com prédios, bares e pessoas. Pegou um carrinho de bebê e jogou pro outro lado do Guaíba. Quando a policia chegou, junto com o FBI, atirando e metralhando, correu para cima da árvore mais alta de Viamão.

- É lá que a areia vira barro. É lá.

Do topo da árvore pensou na vida. Não antes de acender um Padang. Lá em cima era muito frio. O gosto de canela pulverizada consumiu-lhe o paladar.

- Depressão?
- Nostalgia.

Os uivos ecoam pela cidade de Viamópolis. As Jaguatiricas do mato respondiam. Grawrrr.

(...)

Quarenta e oito horas depois em um bar no centro da capital.

- Eu sou só um cão sobrenatural por acaso do inferno.
- Fica tranquilo, cara. Aqui passa todo o tipo de gente.


Ali. Moribundo. Bebendo de seu copo sujo no fundo com pequenos grãos negros de alguma coisa qualquer embebidos por quase 423ml de vodka. Zumbis jogavam sinuca. Fantasmas trovavam as chinas. Pagavam bebidas. Steinhaeger com um litro de Bohemia. Tanto faz. Glup. As vezes o bixo pegava. Dois morriam. Isso se ninguém tivesse um revolver. Dai iam cinco de uma vez. Barbaridade.

O Lobisomem Porto Alegrense. Fora mordido por um vira-lata. Mas não deu bola. Simplesmente mandou se fuder mesmo. Quando vê cinco dias úteis depois TÃÃMN já era. Tinha pulgas e já cagava em cima do sofá. Não frequentava mais as aulas. Não era permitida a sua entrada em casas noturnas. Fora a merda seca que ficava grudada no pelo curto do miserável. Canalha. As vezes dava até pena. E olha que eu não sou dessas frescuras aí. Bom. Esquece.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

[...] AS ADAPTAÇÕES DA LITERATURA DE CORDEL



:: txt :: Thiago Barbosa ::

Na varanda da casa, três candeeiros acesos, já era noite no sertão nordestino, pessoas reunidas, alguns deitados na rede e outros com o violão sobre o colo, a notícia seria rimada e cantada por meio do cordel. Dos livretos expostos em cordas surge o nome dado às rimas impressas no papel e foi por meio destas rimas que muitas notícias chegavam até o povo do campo, como por exemplo, a notícia do fim da segunda guerra mundial e a morte do padre Cícero Romão. Pode-se dizer que o poeta cordelista era o repórter popular.

A rima, a métrica e a oração são os elementos condicionais para compor um cordel. Essa Literatura foi responsável pela alfabetização de muitos sertanejos, foi no repente cantado pelo trovador na época ainda medieval, que iniciou a cultura de rimar palavras. O cordel é um elemento cultural, remonta uma história de ensino aprendizagem e ainda hoje é utilizado nas salas de aula de forma adaptada diante das mudanças existentes na contemporaneidade. “Antigamente o cordel era como se fosse a novela, o jornal e a televisão”, lembra o cordelista sergipano Ronaldo Dória que foi aluno de um dos maiores cordelistas do estado, João Firmino Cabral. Ele comentou ainda o que é preciso para fazer um cordel “Para fazer um cordel, primeiramente tem que ter conhecimento sobre o assunto, porque não adianta falar do que não sabe, e no mínimo tem que ter uma veia poética”, lembra ele.

Essas adaptações vão desde os novos formatos, até às publicações de editoras que se apropriam e publicam os cordéis em forma de quadrinhos, com um layout inovador e com imagens coloridas. A literatura de cordel já pode ser encontrada na internet, reproduzidos em gráficas, utilizando as novas regras gramaticais. As adaptações aparecem ainda nas transformações de grandes clássicos da literatura brasileira e mundial para o cordel, como A Megera Domada, Dama das Camélias, Escrava Isaura, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Viagem ao Centro da Terra, As Aventuras do Marinheiro Simbad, O Alienista, Corcunda de Notre Dame, além desses, a literatura infantil também foi adaptada: Os Três Porquinhos, Alice no País das Maravilhas, O pequeno Polegar, entre outros.

Quanto a essas adaptações o cordelista Ronaldo Dória prefere os modelos tradicionais, “O cordel só é bonito quando é simples, porque o cordel é uma coisa do povo, tem que ser barato para todo mundo comprar”, ressalta. Já para o historiador Dênio Azevedo a sociedade muda e as suas práticas se transformam. “Para mim o que importa é o conteúdo e a manutenção desta forma de expressão da sociedade, independente do formato”.

 A literatura de cordel também acompanhou e transformou assuntos da contemporaneidade. O dilema das células tronco, a chegada do homem à lua, o ataque terrorista às torres gêmeas, até mesmo após a morte de Michael Jackson, dois dias depois já havia uma biografia dele editada e publicada em cordel. A nova ortografia, por exemplo, ensina de forma leve todas a regras que essa mudança gramatical.

Essa ferramenta cultural de comunicação pode ser melhor utilizada pela sociedade, é o que defende o professor Dênio Azevedo “A sociedade deve se apropriar desta ferramenta de comunicação e utilizá-la em campanhas de sensibilização, torná-la cada vez mais recurso didático no processo de ensino-aprendizagem, prosseguir como objeto de estudo dos pesquisadores que se interessam pelo objeto em questão e auxiliar na manutenção desta prática que consegue dar voz a alguns atores sociais que ficam excluídos da maioria dos processos de participação e construção da sociedade”.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

[copyleft] PELA VIDA

:: txt :: Jacques Gruman ::

Ao Heyder, homem do futuro que me ajudou a abrir os olhos.

No início duvidei, mas era verdade. Um israelense tatuou em seu braço o mesmo número que os nazistas haviam gravado em seu pai no campo de extermínio de Auschwitz. Quis, alegou, preservar a memória do pai. Não foi o único. Outros descendentes de vítimas do Holocausto, jovens em geral, fizeram o mesmo.

Forma estranha de celebrar a memória. Reproduzindo o instrumento de tortura e, indiretamente, o gesto do carrasco. Anos atrás, assisti uma peça de teatro em que um personagem atormentado questionava a adoração da cruz pelos cristãos. Não desconheço a simbologia que torna o martírio um caminho necessário para a redenção. Ela não é exclusiva das denominações cristãs. Posso não concordar, mas a respeito. Me perturba, com todos os atenuantes, alçar uma forma bárbara de infligir sofrimento (inventada, aliás, pelos assírios, e não pelos romanos) em objeto de adoração. É a mesma lógica da tatuagem autoimposta pelo israelense. Por que vitalizar o Lado Sombrio da Força ? Para que perpetuar o que o nazismo fez, sistematicamente, para desumanizar suas vítimas ?

Religiões têm relacionamento difícil com o corpo. A circuncisão não é apenas um procedimento profilático, mas, no caso dos judeus, a marca de um pacto. Há muita controvérsia sobre sua necessidade clínica quando o bebê tem menos de duas semanas de vida. Para os religiosos, entretanto, o que importa não são os possíveis benefícios objetivos do corte do prepúcio. O que vale é a marca, o sinal de pertencimento. Podia ser uma tatuagem, um lacinho pendurado no dedo, mas a tradição exige a perpetuidade no corpo. Não tem conversa.

Cenas de religiosos se flagelando não são raras. Na Ashura, o festival anual dos muçulmanos xiitas, os fieis reconstituem a batalha em que foi morto Hussein ibn Ali, neto do profeta Maomé. Teatralização de um fato histórico, mimetiza a dor que marcou o momento fundacional desta vertente do islamismo. Muitos se submetem a um impressionante método de autoflagelação, chicoteando-se e ferindo-se. Não basta a lembrança da dor, é preciso reativá-la. Se isso fosse uma catarse, não seria necessário repeti-la todos os anos. Dor, sofrimento, tristeza, luto. Onde o lugar do prazer ? Por que é tão difícil encontrar um religioso sorrindo ? No Líbano, jovens xiitas doam sangue durante a Ashura, ao invés de vertê-lo em transes coletivos. Dará certo ? Tradição e mudança vivem aos tapas.

O que dizer dos filipinos que, na Semana Santa, deixam-se crucificar ? Como interpretar a mutilação genital feminina, tão devastadoramente comum em regiões do norte da África, num ritual que certos povos consideram “divino” ? Em lugares remotos, sem acesso a antibióticos, essa prática é letal. Calcula-se em um terço o número de meninas que morrem imediatamente em decorrência dela e 100 mil adolescentes morram a cada ano por complicações de parto associadas à mutilação. Quase 100 milhões de mulheres e meninas com mais de 10 anos sofrem, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, as sequelas da mutilação. Que, é bom não esquecer, tira da mulher a possibilidade de ter prazer sexual. Mais uma vez, o espectro do prazer aterroriza tradições religiosas.

Tão assustador quanto a tatuagem de Auschwitz, os pregos das cruzes filipinas e outras mutilações, é a vulgarização do corpo. No capitalismo, onde tudo está à venda, isso adquire dimensões paroxísticas. Uma estudante brasileira acaba de colocar em leilão sua virgindade. Os lances são dados pela internet e, depois de um primeiro impacto, a notícia já foi varrida para os pés de página da história. Como diria o Barão de Itararé, tudo na vida é passageiro, menos o cobrador e o motorneiro. O que deveria ser uma experiência amorosa marcante, vira supermercado, insensível, previsível, esquecível. Um pedaço do corpo é trocado por uma viagem ou um jantar em restaurante da moda. A vida e suas marcas corporais banalizam-se. A memória afetiva vira subproduto da conta bancária.

Não subestimo a capacidade que as religiões têm de oferecer consolos para essa tarefa complicada que é viver. Estamos sempre à beira de ilusões de todos os tipos. Falar e experimentar as pedras do caminho, não para consolidá-las, mas para transformá-las, exige coragem e perseverança. E não há garantia de fábrica de que vá dar certo. Não se devolve produto defeituoso. Karl Marx teve a sua dose. Conta-se que ele não foi ao enterro do pai porque tinha um compromisso político. Os que conviviam com ele, acharam que aquilo não deixaria sequelas. Ledo e ivo engano. Depois de morrer, seus amigos encontraram no bolso de seu paletó ... um retrato do pai. Atualizando um dos slogans mais conhecidos do grande filósofo, eu diria: homens e mulheres de todo o mundo, falai ! Deixai fluir as alegrias, as angústias, as inseguranças, o prazer. Deixai para trás a sedução do apelo fácil das cartilhas, dos profetas da dor e do imobilismo. Imóvel é a Morte.

domingo, 11 de novembro de 2012

[...] GRITOS DO NADA


:: pht :: Os Bronha :: 
:: psy :: Roberto Furioso :: 

Não sou poeta e nem rei das crônicas, isso não é um manifesto e nem mesmo um relato. É um triste reflexo do mundo moderno "civilizado" totalmente habitado por selvagens que só respeitam seus hormônios e instintos. As leis são para os fracos e aos manipuláveis.

Eu já tentei de tudo, já raspei o cabelo, cheirei cola, gritei nas ruas...
mas nem o eco me deu respostas.

Corri nu nas ruas e profanei os Deuses.
Ri dos sábios e sem demora viciei na sarjeta.

Mas nada valeu.
O dia nasceu.
Com ele veio o trabalho.
Estudo.
Sem tempo pro café, o trem.

Com o trem vem gente
muita gente.
Todos silênciosos e apressados.

Correr??
Compramos, vendemos.
Distribuimos e acumulamos bens.
Pra quê??

Só quero argumentos.

[...]

Corremos e nos estruturamos,
como formigas!

Mas somos formigas??
Sem cérebro??

Nada faz sentido.
nem a tevê e nem o livro.
Reféns da alienação.
Já somos alienados.

Vamos lá caro Marx,
diga algo ao sujeito alienado!

sábado, 10 de novembro de 2012

[overmundo] GERALDO VANDRÉ: O MORTO-VIVO DA DITADURA DO BRASIL


:: txt :: Abílio Neto :: 

Só existem dois mitos na música brasileira: Elis Regina e Geraldo Vandré. Elis com a sua morte precoce, aos 36 anos, e Geraldo Vandré com a sua renúncia à vida, na “volta” do exílio em 1973.

Geraldo Vandré se transformou num morto-vivo aos 38 anos de idade. Está atualmente com 77 anos. Como se vê, tem mais anos como morto insepulto do que vivo.

O que teria ocorrido para que esse paraibano de João Pessoa abandonasse uma carreira artística tão promissora que em pouco tempo fez dele o maior compositor brasileiro? A resposta é muito simples e está nestes versos:

“... Pelos campos há fome em grandes plantações
Pelas ruas marchando indecisos cordões
Ainda fazem da flor seu mais forte refrão
E acreditam nas flores vencendo o canhão

Vem, vamos embora, que esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.

Há soldados armados, amados ou não
Quase todos perdidos de armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição
De morrer pela pátria e viver sem razão

Vem, vamos embora, que esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer...”

Em 1968, estes versos foram cantados pelo próprio Vandré se acompanhando ao violão para delírio de 30 mil pessoas que lotavam o Maracanãzinho que vaiavam estrepitosamente a música “Sabiá”, de Tom Jobim e Chico Buarque. Vandré pegou o microfone e falou: “A vida não se resume a festivais”.

Gravada logo em seguida, surpreendentemente, por Luiz Gonzaga, a música seria logo proibida depois do advento do AI 5, afinal nenhuma ditadura militar toleraria versos tão provocantes e verdadeiros. Mas essa era a característica marcante das canções de Vandré: ele era um doutrinador, um domador de consciência das massas, e se esse papel já preocupa os regimes democráticos, imagine o estrago que causou na ditadura militar brasileira e depois na chilena! Nenhum outro compositor brasileiro de antanho teve essa incrível capacidade que ele demonstrou.
Sim, Geraldo Vandré foi para o Chile. Iria fazer um show em Brasília em dezembro de 1968 acompanhado por um grupo de músicos no qual estava incluído o pernambucano Geraldo Azevedo, quando foi avisado pela então mulher de Caetano, Dedé Veloso, de que os milicos estavam à sua cata para prendê-lo e quem sabe fazer o que dele?

Disse Vandré a Geneton que voltou para São Paulo guiando seu carro. As coisas não aconteceram bem assim. Ele se refugiou na casa da viúva do escritor Guimarães Rosa e de lá só saiu para embarcar para o Chile devidamente “preparado” para que não fosse reconhecido pela Polícia Federal. Conseguiu fugir do país com um passaporte falso arrumado por amigos. Era fevereiro de 1969.
No final daquele mesmo ano ele gravou um compacto no Chile com duas músicas: 1) Caminhando (na versão em espanhol) e 2) Desacordonar. Esta última canção eu considero a maior que ele fez. Ela trazia mais conscientização de massas e mais problemas para ele com os militares, desta vez os chilenos. Os serviços de inteligência das Forças Armadas de lá passaram a monitorar seus passos.

Em novembro de 1970, Salvador Allende tomou posse na presidência do Chile para desespero de Richard Nixon, da CIA e do regime ditatorial brasileiro.

Geraldo Vandré partiu para a Europa nesse mesmo ano e na França gravou um disco primoroso que somente seria lançado no Brasil em 1973: “Das Terras de Benvirá”. Juntou-se a músicos brasileiros e fez uma turnê por diversos países. Foi por esse tempo que conheceu o músico Marcelo Melo que estudava na Bélgica e em 1971 regressaria ao Brasil fundando com outros músicos o Quinteto Violado. Foi também desse período a sua prisão com um grupo de amigos na França porque faziam uso do haxixe. Ele que era casado com uma chilena, passou a viver um drama pessoal porque a mulher o abandonou e voltou ao seu país. Geraldo, querendo salvar seu casamento, voltou ao Chile em 1972 e nesse mesmo ano participou de um festival de música no Peru. Antes desse disco lançado na França, o Brasil já contabilizava quatro LP seus: 1) Geraldo Vandré – 1964; 2) Hora de Lutar – 1965; 3) 5 Anos de Canção – 1966; 4) Canto Geral – 1968.

No meado de 1973, o Chile era uma agitação sem fim. A CIA financiava os empresários chilenos para que estes fizessem greve paralisando a atividade de comércio, indústria e transporte com o fim de desestabilizar o governo Allende e os militares já se organizavam para dar o bote final pela tomada do poder. No começo de julho de 1973, os militares chilenos puseram a mão em Vandré e comunicaram a seus colegas brasileiros. Não o queriam lá. Um avião da FAB foi destacado para ir buscar o ilustre “fisgado” no Chile.

Foi nesse vôo do Chile para o Brasil que Vandré conheceu o seu santo salvador, ou o seu anjo da guarda. O militar, um coronel aviador da FAB era seu admirador e sabia o que o aguardava no Brasil. Temia até pela sua vida. Com o desembarque em terras brasileiras, o Exército deu sumiço a Vandré por 58 dias, mas o anjo da guarda sempre descobria onde ele estava e não permitia que ele morresse nas sessões de tortura. Apesar dessa intervenção em seu favor, notícias de bastidores militares dão conta de que Vandré sofreu lavagem cerebral, internação em hospital psiquiátrico e até a perda dos testículos! Tudo isso para aprender a não fazer mais canção dizendo que “militar vive sem razão”. Quando ele morrer de fato e de direito, seu cadáver deverá ser examinado para esclarecer sua comentada emasculação perante a história política deste país.

Com o compositor já transformado no trapo que os militares queriam, “apareceu” no aeroporto de Brasília justamente em 11/09/1973, data em que Pinochet deu o golpe fatal, matou Allende e ocupou o poder. Vandré surgiu como se tivesse desembarcado do Chile naquele momento! Como se isso fosse possível naquele fatídico dia 11 de setembro chileno quando ninguém entrava ou saía do país. Por incrível que pareça, estava de plantão no aeroporto um repórter da Rede Globo à espera dele que o entrevistou e ouviu sua “confissão” de que dali em diante somente faria “canções de amor”. Gilberto Gil, em 1972, foi obrigado a dizer coisa parecida! Pronto, a partir dessa entrevista estava morto o grande artista Geraldo Vandré.

Vandré tornou-se até agressivo com seus fãs. Morando no centro de São Paulo, certa vez foi reconhecido por um deles que gritou: Vandré!!! Ele respondeu de modo áspero: “meu nome agora é Geraldo Pedrosa, porra”!

Elba Ramalho, como amiga dele que era, teve que aturar as suas esquisitices por um bom tempo, andando com ele pra cima e pra baixo, até que lhe pediu autorização para gravar “Canção da Despedida” e ele a negou. Inconformada ela ligou para o outro parceiro de Vandré na música, Geraldo Azevedo, que procurou falar com ele. Pra vocês terem uma idéia, Vandré permitiu que a música fosse gravada somente com o nome de Geraldo Azevedo como autor porque ele não queria que o nome dele aparecesse mais em discos gravados no Brasil. Aconteceu em 1983, por ocasião da gravação do LP “Coração Brasileiro”. A música foi composta em dezembro de 1968 quando Vandré pressentiu que não mais poderia ficar no Brasil. Isso demonstra para qualquer ser vivo como Geraldo Pedrosa matou Geraldo Vandré ou o obrigaram a fazer isso. Elba Ramalho, na época, o chamou de louco. Fácil não é, Elba? Você passou por tudo aquilo? Geraldo Azevedo não disse nada porque ele foi preso duas vezes e severamente torturado, chegando a presenciar a morte de um “subversivo” nas mãos dos torturadores.

Voltando ao tema autorização de Vandré, o mesmo aconteceu com Marcelo Melo em 1997 quando o Quinteto Violado lançou um CD em sua homenagem e também com Zé Ramalho, já neste século XXI, que gravou “Fica Mal Com Deus” fazendo um dueto póstumo com Luiz Gonzaga. Vandré não autorizou absolutamente nada!

A conclusão lógica de todo esse mistério é que Vandré foi forçado a essa situação dolorida: ou parava com a sua arte de cantor/compositor ou morria. Ele não teve escolha! Ah, mas antes disso ele fez uma canção para a FAB que se chama “Fabiana”, que foi apresentada aos militares da Aeronáutica em 1976. Não me perguntem por que ele não fez música pro Exército também. Agora o que deveria ser perguntado era o porquê de Geraldo Vandré continuar mudo depois de 1985, quando os milicos deixaram o poder. Ah, ele não tem tempo. Ocupa-se em fazer músicas em espanhol e também compor sinfonias!

Criticar Geraldo Vandré por sua opção para continuar vivo é muito cômodo. Difícil é passar por tudo o que ele sofreu e demonstrar ainda alguma lucidez numa entrevista. Pois ele a mostrou! Se bem que é facilmente perceptível que em alguns momentos ele faz confusão mental, mas em certos trechos da entrevista ele é impressionante! Fiquei besta quando publiquei esta entrevista dele com o Geneton em 2010, no final daquele ano, pois um compositor que tenho em alta conta ocupou a postagem para dizer que Vandré é um fantoche. Que ele nunca existiu para a música brasileira. É imensamente triste constatar que o Brasil perdeu o respeito por Geraldo Vandré!

Entenderam agora o motivo pelo qual ele concedeu a entrevista vestido com uma camisa branca com o distintivo da FAB, compôs uma canção chamada “Fabiana” em sua homenagem e quando vai ao Rio de Janeiro, visitar sua mãe, se hospeda no Clube da Aeronáutica, local onde a entrevista foi realizada?

É muito simples! A FAB o retirou de um país onde certamente seria morto e um seu oficial não permitiu que ele fosse jogado, sem identificação, numa vala clandestina de um cemitério qualquer de São Paulo ou de outro lugar. Se ele é grato por isso, está certíssimo! Como dizia o saudoso Cantinflas, “é preferível um covarde vivo a cem heróis mortos”! Depois dessa entrevista e de conhecer esses fatos, minha admiração por ele cresceu. Ele não cabe em si de tanta grandeza! Ah, tenho o áudio de sua canção “Desacordonar” que me foi presenteado por um oficial da reserva da Aeronáutica. O áudio não estava bom, mas aí apareceu um amigo cibernético que me mandou outro digno de ser ouvido! Fico a escutar os nove minutos da canção e às vezes me pego olhando esta fotografia acima, do Vandré pós 1973 e já no ocaso da vida, não sem algumas lágrimas nos olhos e no coração. Já dizia Fernando Pessoa tomando emprestada dos primeiros navegadores portugueses esta expressão: “Navegar é preciso. Viver, não é preciso”.

A prova de que sepultaram Vandré em vida se compreende com a indesculpável falha da Rede Globo permitindo que se destruísse o vídeo com as imagens do Maracanãzinho lotado em 1968 e Vandré cantando “Caminhando”, tudo para agradar aos milicos. Prestem atenção que na entrevista abaixo ele cobra isso do inquiridor global. As únicas imagens de Geraldo Vandré ao vivo estão aqui, quando ele canta “Aroeira” em companhia de um grupo de músicos bastante conhecido. A gravação é de 1967.

Agora assistam a entrevista completa com o que sobrou do grande artista Geraldo Vandré. Ela é deprimente em alguns momentos, porém bastante elucidativa em outros! Vejam que na abertura do programa, o locutor oficial disse que seria decifrado o enigma Geraldo Vandré. Não foi isso o que aconteceu. A entrevista confundiu mais do que esclareceu. Cotejada com outros fatos omissos, ela ganha uma importância fundamental para que se assimile por completo a figura humana do Geraldo Vandré que chegou aos dias atuais. Concordo com ele em certos pontos: o Brasil de hoje não tem mais cultura para curtir as músicas de Vandré.

Geraldo Pedrosa de Araújo Dias nasceu em João Pessoa/PB em 12 de Setembro de 1935 e já demonstrava forte inclinação musical quando fez o curso ginasial num colégio interno em Nazaré da Mata/PE. O nome Vandré é a abreviatura de Vandregésilo, que é como se chama seu pai. O escritor e crítico musical Ricardo Anísio, seu conterrâneo, é quem cuidará da sua biografia. Acho que terá um trabalho imenso para mostrar ao Brasil que o verdadeiro compositor não é o que deu esta entrevista para Geneton Moraes Neto, famoso jornalista pernambucano, porque o ente político Vandré foi brutalmente assassinado em 1973.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

[agência pirata] REGISTROS DE USOS SECULARES DA CANNABIS NO BRASIL


:: txt :: Bruno César Cavalcanti ::

 No Brasil, a cannabis sativa foi pango, nas referências mais antigas, e ainda fumo de Angola, liamba, riamba e diamba. Este último nome predominou sobre pango e fumo de Angola, no século XIX, e cedeu espaço, no século XX, para liamba, até ser definitivamente vencido por maconha. Foi ainda denominada erva-do-diabo, particularmente na imprensa diária, quando das campanhas de profilaxia após os anos 40.

 Uma das mais antigas referências do uso ritualizado da maconha, anotado por Luiz Mott, dá conta de que, nas Minas Gerais de 1777, uma mulher de nome Brígida encontrava-se a dançar calundus, fazendo trejeitos e mudanças, dando a cheirar a todos os "circunstantes certo ingrediente (...) e que ficavam absortos e fora de si, e ensinava Brígida que as almas dos mortos se introduzem nos vivos. Dizia mais que o 'calundu' é o melhor modo de dar graças a deus, convidando todas as pessoas da fazenda a vir ao calundu, e se alguma escusava, lhe dava a cheirar e lhe chegava aos narizes uma erva com a qual ficavam absortos e fora de si e esquecidos das obrigações de católicos e entravam na mesma dança".

 Muito tempo depois, em 1905, escreveria o Dr. Pires de Almeida, em seu A libertinagem no Rio de Janeiro, que "homens e mulheres de toda casta, completamente nus, afluiam aos candomblés e no meio de danças convulsionadas, e aos vapores de pango, faziam comemorações aos mortos".

 O médico baiano Dr. Rodrigues Dória foi o primeiro autor nacional a escrever um texto unicamente dedicado ao tema do seu consumo popular em ascenção e difusão, em 1915, contando que "os índios amansados aprenderam a usar maconha, vício a que se entregam com paixão, tornando-se hábito inveterado. Fumam também os mestiços (...) entre nós a planta é usada, como fumo ou em infusão, e entra na composição de certas beberagens, empregadas pelos feiticeiros, em geral pretos africanos ou velhos caboclos. Nos candomblés - festas religiosas dos africanos, ou dos pretos crioulos, deles descendentes e que lhes herdaram os costumes e a fé, é empregada para produzir alucinações e excitar os movimentos nas danças selvagens dessas reuniões barulhentas. Em Pernambuco a erva é fumada nos catimbós - lugar onde se fazem os feitiços, e são freqüentados pelos que vão ali buscar a sorte e a felicidade. Em Alagoas, nos sambas e nos batuques, que são danças aprendidas dos pretos africanos, usam a planta, e também entre os que porfiam na colcheia, o que entre o povo rústico consiste em diálogo rimado e cantado em que cada réplica, quase sempre em quadras, começa pela deixa ou pelas palavras do contendor (...) É fumada em quartéis, nas prisões, em agrupamentos ocasionais ou em reuniões apropriadas e nos bordéis".

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

[agência pirata] MÍDIA BRASILEIRA À DIREITA DOS CONSERVADORES


:: txt :: Alberto Dines ::

 Em 2008, era Oba-Oba-Obama. Numa rara recaída idealista, nossa grande imprensa então o saudou como símbolo dos novos tempos, foi adjetivado como “pós-racial”, “pós-ideológico” e coroado como novo Roosevelt.

Na sexta-feira (2/11), quando começou a circular sua última edição antes das eleições americanas, o semanário The Economist, com 169 anos de existência, surpreendeu a fina flor do empresariado global com o endosso à reeleição de Barack Obama. O entusiasmo não foi o mesmo do pleito anterior, mas a opção foi inequívoca e jornalisticamente audaciosa:

“Muitos empresários americanos podem achar que nada seria pior do que conceder mais quatro anos a Obama. Pedimos licença para discordar. Por trás de suas intenções empreendedoras, Romney tem um plano econômico que só funcionará se não acreditarmos no que ele prega. Não é o tom apropriado para um executivo-chefe. E apesar de todas as suas deficiências, Obama tirou a economia da beira do desastre e exibiu posições decentes em política externa. Este jornal prefere continuar com o diabo que conhece e aposta na sua reeleição.”

No sábado (3), fim de semana do feriadão, dos jornalões nacionais apenas o Globo noticiou o importante apoio; dos regionais, somente o Correio Braziliense. O resto enrustiu a notícia, não quis passar uma má impressão do seu candidato in pectore, Mitt Romney.

Papel secundário

Obama é o preferido de prestigiados colunistas como Míriam Leitão (O Globo), Arnaldo Jabor (Estadão-Globo), Clóvis Rossi (Folha), Caio Blinder (Veja on-line), Juca Kfouri (Folha). O grosso do opinionato, no entanto, reza o padre-nosso corporativo enquanto os editoriais vociferam o credo antiestatal. (Colunistas pró-Obama não citados nesta brevíssima relação, ou seus admiradores, estão cordialmente convidados a registrar eventuais injustiças deste observador.)

Valor não circulou na sexta, dia 2, feriado: como não é um jornal premido pela atualidade, poderia ter comentado na segunda-feira o inesperado e inusitado apoio da revista prudentemente conservadora em favor de um candidato discretamente pró-regulação. Para um leitor altamente qualificado como o seu seria o verdadeiro “algo mais”.

Na segunda (5/11), repetiu-se a história com o anúncio do apoio do Financial Times, a bíblia cor de salmão do mundo econômico, a um presidente que na melhor das hipóteses seria classificado como “centrista”. Este segundo apoio foi mais enfático e destacado do que o do semanário publicado pelo mesmo grupo Pearson:

“Obama é a melhor aposta para os EUA em crise. Romney não inspira confiança para tocar uma agenda clara. Seu plano de cortar impostos não vai reanimar a economia.”

A notícia não provocou a menor reação nos veículos digitais ao longo do dia. Esta omissão aponta para três clamorosas disfunções:

1. A esmagadora maioria dos gatekeepers de nossas redações não conhece, não lê e não avalia a importância das duas publicações;

2. Nossa grande imprensa (nela compreendidos conglomerados regionais) deixou-se contaminar por uma ortodoxia ideológica incompatível com as noções de diversidade e pluralismo, indispensáveis a uma sociedade democrática;

3. Nossa mídia digital não tem dimensão, é absolutamente secundária: os portais de notícias são meras extensões da mídia impressa – burocráticos, burros, banais.

Anestesia geral

Então, como explicar a substituição em apenas quatro anos de uma generalizada empatia em favor do presidente americano pela clara antipatia ao candidato à reeleição?

Responsáveis pela mudança teriam sido as intervenções de Obama no mercado financeiro, na indústria automobilística ou o lançamento do plano nacional de previdência médica (Medicare)? Ou foi a súbita entrada do Tea Party no cenário político americano o fator que excitou os correligionários nacionais e os estimulou a criar um símile nacional?

Outra hipótese para explicar a súbita má vontade da nossa mídia contra Obama: reação ao simpático empurrão que deu ao então colega brasileiro quando disse “Lula é o cara”.

É evidente que o eleitorado americano no Brasil é ínfimo, certamente não toma suas decisões em função do que lê, vê ou ouve na mídia local. Para o eleitor americano aqui residente a omissão do endosso do Economist e do FT ao candidato Obama não faz a menor diferença.

Porém, faz uma enorme diferença subtrair do cidadão brasileiro, sobretudo do multiplicador de opinião, informações cruciais que o ajudarão a entender os bastidores do mundo globalizado. O teor dos votos do Economist e do Financial Times são fundamentais para exibir as diferentes escolas de capitalismo, liberalismo, e para denunciar algumas balelas sobre o empreendedorismo à la Romney.

Uma coisa é certa: enquanto a imprensa argentina é sitiada pelo peronismo kirchnerista, no Brasil uma anestesia geral está sendo ardilosamente preparada por aqueles cuja função legal é denunciá-la.

>> Em tempo: Na terça-feira (6/11), o Valor informa na primeira página que os empresários preferem Mitt Romney – reproduzindo, no miolo, matéria do Wall Street Journal, que defende o candidato republicano. A Folha, num pequeno quadro nas páginas internas, relembra os apoios dos jornais a Obama e cita o Economist.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

[bolo'bolo] A MÁQUINA PLANETÁRIA DO TRABALHO

   O nome do monstro que deixamos crescer e que mantém nosso planeta em suas garras é: Máquina Planetária do Trabalho. Se queremos que a nossa espaçonave volte a ser um lugar agradável, temos que desmantelar essa Máquina, consertar os estragos e fazer certos acordos básicos para um novo começo. Então, nossa primeira pergunta deve ser: como faz a Máquina Planetária do Trabalho para nos controlar? Como é organizada? Quais são seus mecanismos e como podem ser destruídos?

    A Máquina é planetária: come na África, digere na Ásia e caga na Europa. É planejada e regida por companhias internacionais, sistemas bancários, circuitos de combustível, produtos não-manufaturados e outros bens. Existem montes de ilusões quanto a nações, Estados, blocos, Primeiro, Segundo, Terceiro e Quarto Mundos – mas estas são só subdivisões menores, partes da mesma maquinaria. Claro que diferentes engrenagens exercem pressões, tensões e fricções entre si. A Máquina é feita de suas próprias contradições: operários/capital; capital privado/capital do Estado (capitalismo/socialismo); desenvolvimento/subdesenvolvimento; miséria/desperdício; guerra/paz; mulheres/homens, etc. A Máquina não é uma estrutura homogênea; ela usa suas contradições internas para expandir seu controle e sofisticar seus instrumentos. Diferente dos sistemas fascistas ou teocráticos, ou como no 1984 de Orwell, a Máquina do Trabalho permite um nível "sadio" de resistência, inquietação, provocação e revolta. Ela digere sindicatos, partidos radicais, movimentos de protesto, manifestações e mudanças democráticas de regime. Se a democracia não funciona, ela usa a ditadura. Se a sua legitimidade entra em crise, ela tem prisões, tortura e campos de concentração de reserva. Nenhuma dessas modalidades é essencial para entender a função da Máquina.

    O princípio que governa todas as atividades da Máquina é a economia. Mas o que é economia? É uma troca impessoal e indireta de tempo de vida cristalizado. Você gasta seu tempo para produzir uma peça que é usada por alguém que você não conhece para montar uma bugiganga que é comprada por outro desconhecido para fins que você ignora. O circuito dessa sucata de vida é regulado de acordo com o tempo de trabalho que foi investido no material bruto, na sua manufatura e em você. A medida é o dinheiro. Os que produzem e trocam não têm controle sobre seu produto comum, então pode acontecer que trabalhadores revoltados sejam mortos exatamente com os revólveres que ajudaram a produzir. Cada peça de comércio é uma arma contra nós, cada supermercado um arsenal, toda fábrica um campo de batalha. Este é o mecanismo da Máquina do Trabalho: retalhar a sociedade em indivíduos isolados, chantageá-los separadamente com salários ou violência, usar seu tempo de trabalho de acordo com os planos. Economia quer dizer: expansão do controle da Máquina sobre suas partes, tornando essas partes cada vez mais dependentes da própria Máquina.

    Todos somos partes da Máquina Planetária do Trabalho – nós somos a Máquina. Representamos a Máquina uns contra os outros. Desenvolvidos ou não, assalariados ou não, autônomos ou empregados, servimos à proposta dela. Onde não há indústria, "produzimos" trabalhadores virtuais e exportamos para zonas industriais. A África produziu escravos para as Américas, a Turquia produz trabalhadores para a Alemanha, o Paquistão para o Kuwait, Ghana para a Nigéria, o Marrocos para a França, o México para os Estados Unidos. Áreas virgens podem ser usadas como cenário para os negócios turísticos internacionais: índios em suas reservas, polinésios, balis, aborígenes. Os que tentam sair da Máquina preenchem as funções de pitorescos marginais (hippies, yogues, etc.). Enquanto a Máquina existir, estaremos dentro dela. Ela destruiu ou mutilou quase todas as sociedades tradicionais ou as levou a desmoralizantes situações defensivas. Se você tenta se retirar para um vale deserto e viver sossegadamente de uma agricultura de subsistência, pode crer que vai ser encontrado por um coletor de impostos, um funcionário do planejamento ou um policial. Com seus tentáculos, a Máquina pode alcançar virtualmente todos os lugares deste planeta em questão de horas. Nem nas partes mais remotas do deserto de Gobi você pode dar uma cagadinha sem ser notado.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

[do além] OPERAÇÃO TEMAKERIA


 :: txt :: Ian Fleming ::

 Meu personagem, James Bond, deu origem a franquia mais antiga e lucrativa da história da indústria cinematográfica. Todos os filmes juntos já faturaram mais de 12 bilhões de dólares. E foram vistos por uma boa parte da população do planeta. 007 é o agente secreto mais conhecido do mundo. O que é uma contradição em termos.

 O termo “franquia”, utilizado para designar continuações de um filme de sucesso, me parece estranho e bastante apropriado. Eu o leio e imediatamente imagino uma rede de frozen yogurt, com lojas padronizadas e cardápio unificado. E não há nada de desabonador nesta imagem. Franquias são feitas para dar dinheiro, igualzinho aos filmes.

 Mas você sabe como são essas coisas. Nem sempre a relação, entre quem vende um modelo de negócio e quem o implanta, é tranquila. O Franqueador precisa que o franqueado respeite os valores da marca e siga a risca as normas e procedimentos estabelecidos. Já o franqueado quer contribuir, inovar métodos e imprimir um pouco do seu estilo. Inventa o McAcarajé com pimenta forte (o número 2 por razões óbvias) e fica decepcionado com o franqueador intransigente, que veta suas ideias e demonstra insensibilidade para enxergar as oportunidades dos mercados regionais.

 Até agora a franquia 007 contratava diretores de aluguel de reconhecida competência técnica, mas sem notoriedade. Claro, queríamos um bom chef que seguisse a receita, sem ímpetos de acrescentar novos ingredientes. Skyfall é o primeiro filme da série conduzido por um realizador renomado, Sam Mendes, ganhador do Oscar por Beleza Americana. Mendes é um profissional que assina suas realizações, mesmo trabalhando na Indústria hollywoodiana.

 Devo dizer que gostei do resultado geral. Sam trouxe apuro visual para todo filme, não ficou restrito aos já tradicionais e belos créditos iniciais. A narrativa está mais envolvente. Outro acerto foi a introdução de novos conflitos. Além do maniqueísmo de praxe, bem versus mau, temos agora o velho versus o novo, o analógico versus o digital. O vilão está digno da melhor tradição da série. Craig é um James Bond dos bons. As cenas de ação seguem o padrão de qualidade da franquia, apesar de que, em alguns momentos, abdicam da clareza em favor da estética.

 Como disse, no geral o filme está ótimo. No entanto, tenho uma reclamação pontual a fazer. Cadê as bond girls? Duas só são suficientes? Elas quase inexistem. Quem foi que deu licença para matar as cenas eróticas e sexistas? Faltou tempo? Sam não poderia ter cortado um pouco da rasa dimensão freudiana da história? Vê se pode, a grande bond girl de Operação Skyfall é a M, a chefona do MI6, papel desempenhado pela veterana atriz Judi Dench. Francamente, não era isso que estava no manual de implementação do franqueado.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

[domínio público] UM BRASILEIRO NA GUERRILHA BOLIVIANA



:: txt :: Daniel Cassol ::

Os guerrilheiros do Exército de Libertação Nacional estão quase completando a travessia do rio Chimate, ao norte da Bolívia. Acossados  pelos militares, precisam ser rápidos. A vanguarda já atravessou o rio e a coluna do centro avança, observada por Raúl e Dippy, soldados da retaguarda destacados para indicar aos companheiros o caminho seguido pelas duas colunas da frente. No relógio, “expropriado” pela guerrilha, Dippy vê que são seis horas da tarde do dia 1º de setembro de 1970.
Uma patrulha militar ataca e a guerrilha se parte em duas. A retaguarda não consegue atravessar o rio. Raúl e Dippy correm mato adentro para escapar dos tiros. Esperam até a noite, talvez sejam encontrados pelos companheiros. Escutam disparos de morteiros e percebem que será impossível atravessar o rio.
A retaguarda nunca mais iria se reencontrar com o resto da tropa. Raúl e Dippy, estrangeiros em solo boliviano, ficariam sós.
Raúl é o nome de guerra do peruano Antero Callapiña Hurtado, estudante de engenharia civil na Polônia, recrutado para a guerrilha, assim como dezenas de jovens latino-americanos que estudavam em países socialistas. O outro, Dippy, era o único brasileiro entre os 67 combatentes que subiram as montanhas de Teoponte, a cerca de 200 quilômetros ao norte de La Paz, para retomar a guerrilha em Ñancahuazú, abortada três anos antes com a morte de seu comandante, Ernesto Che Guevara.
Dippy entrou com o codinome Eugenio, mas todos os chamavam pelo apelido adquirido no treinamento em Cuba, por abrasileirar a expressão “de pinga” – “di pinga”, ele dizia -  popularmente usada para se referir a algo formidável. Daí, virou Dippy.
Apartados do grupo, peruano e brasileiro passam quase 30 dias lutando pela sobrevivência na selva boliviana. Comem palmito e mascam folhas de coca para não morrer de inanição. Tentam chegar a algum povoado sem serem capturados pelo Exército. No último registro de seu diário, o brasileiro escreve:
- Hoje é uma data que não posso deixar de lembrar: dia 25. Faz quatro meses que me casei com Susana e hoje lembro dela mais do que nunca. Sinto falta dela e quero encontrá-la. Espero fazer isso antes do dia 1º de novembro e não pretendo me separar dela nunca mais.
O reencontro com a esposa, que àquela altura esperava um filho, nunca aconteceria.
Gaúcho de Formigueiro
Luiz Renato Pires Almeida é um dos 13 desaparecidos políticos brasileiros em território estrangeiro. As circunstâncias de sua execução nunca foram esclarecidas, tampouco seu corpo foi encontrado. O caminho que o levou de Formigueiro, no interior do Rio Grande do Sul, onde nasceu em 18 de novembro de 1943, até as montanhas bolivianas, onde morreu no começo de outubro de 1970, é o que se conta a seguir.
Caçula de 11 irmãos, filho de um agricultor, Lucrécio, e de dona Doca, apelido de Maria Conceição, o menino de Formigueiro foi morar na cidade aos 7 anos, quando o pai comprou uma “venda” em São Sepé, então sede do distrito. Em março de 1951, a família se instalou numa casa localizada no número 747 da rua 7 de Setembro.
Era um guri “medonho”, lembra a irmã Deni, e gostava de jogar futebol. Cursou metade do ginásio no Colégio Madre Júlia, de freiras, e concluiu o ensino fundamental no Colégio Estadual Tiaraju, onde fazia parte da chapa eleita para o Grêmio Estudantil em 1960. Ainda assim, contam os amigos, o garoto gostava mais das festas do que da política.
No Rio Grande do Sul, vivia-se a efervescência da Campanha da Legalidade, liderada em 1961 pelo governador Leonel Brizola, do Partido Trabalhista Brasileiro, para garantir a posse do presidente João Goulart, depois da renúncia de Jânio Quadros. A família comandada pelo pai, simpatizante da União Democrática Nacional (UDN), era politicamente conservadora.
A primeira influência mais à esquerda viria do professor Gerôncio Vaz, adepto dos ideais trabalhistas, que se tornaria um grande amigo de Renato. Mas ele só descobriria a política para valer ao se mudar em 1962 para Santa Maria, maior cidade da região, para cursar o Clássico no Colégio Estadual Manuel Ribas, o tradicional Maneco, e cumprir o serviço militar no 7º Regimento de Infantaria. Ali, voltou a ter contato com armas, das quais aprendera a gostar nas caçadas com os irmãos.
Na cintura, uma pistola de três canos
Em fevereiro de 1963, Renato ingressou na primeira turma do Colégio Agrotécnico da recém fundada Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Eleito para a diretoria do Centro de Estudantes do Colégio Agrotécnico, entrou de cabeça no movimento estudantil, mobilizado na defesa das reformas de base propostas pelo presidente João Goulart.
Ao 20 anos de idade, mais velho que a maioria da turma do ensino técnico, Renato impressionava. “Como era o mais velho da turma, era o líder da gurizada. Gostava de trago, fumava, andava armado. A gurizada achava o máximo”, recorda o colega Beto Vargas, hoje médico na cidade de Bagé. A pistola de três canos que carregava na cintura é uma lembrança dos amigos da época. “Foi a única vez que vi uma pistola daquelas”, recorda Rogério Vargas, irmão de Beto.
Rogério e Beto dividiam um quarto com Renato em uma pensão de Santa Maria. Renato tinha o costume de tomar chimarrão com Rogério pela manhã, para escutarem um programa da Rádio Nacional de Moscou transmitido em português.
Para a família, era visível a transformação do filho mais novo. “Nas primeiras férias que voltou de Santa Maria, era outra pessoa”, diz Zeca, um dos irmãos. “O Renato conversava um pouco com a gente e já vinha com a pregação do Mao Tsé-Tung”, lembra, achando graça. “Não seja tapado, tem que abrir os olhos”, dizia a Zeca. Chamava o pai de “tubarão” por estar politicamente ao lado dos ricos. Mas não deixava de abraçá-lo e chorar quando se despedia da família para retornar a Santa Maria. O apego à casa o faria escrever cartas aos irmãos de todos os lugares onde viveria depois.
Liderança estudantil
Em janeiro de 1964, Luiz Renato retornou de um congresso na Paraíba eleito presidente da União Nacional dos Estudantes Agrotécnicos (UNEA). Quase por acaso assumiu o cargo que o levaria à clandestinidade.
O candidato natural à presidência pela delegação gaúcha era o atual governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, na época com 16 anos – eleição que seria realizada no congresso em Bananeiras (PB), entre 5 e 13 de janeiro daquele ano. Mas Tarso desistiu da indicação em troca de seis passagens áreas para que a delegação gaúcha viajasse à Paraíba, como ele conta hoje:
“Quando nós montamos a nossa delegação, conseguimos passagens com o presidente João Goulart através do meu pai, que era amigo do João Goulart”, relembra Tarso. “Mas aí o meu pai, naquela boa chantagem paterna, disse o seguinte: eu consigo as passagens para vocês, mas tu tens que prometer que não vais ser candidato a presidente da UNEA, tens que voltar para Santa Maria para continuar os estudos. E de fato cumpri a promessa. Chegamos lá, substituímos o meu nome e apresentamos o nome do Luizinho, que foi eleito presidente da UNEA”, conta o governador.
Até os amigos mais próximos ficaram surpresos com a eleição de Luiz Renato, como lembra o colega Eros Marion Mussoi, hoje professor na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “Ele era um cara cheio de vida e ideias, como boa parte da nossa geração. No início não era propriamente um ‘revolucionário’, mas tinha ideias sociais e humanistas muito claras. Um sujeito de um grande coração e preocupado com os outros”, diz.
Para Tarso Genro, de “Luizinho” ficou a lembrança do colega corajoso e do grande amigo. E da pistola de três canos, que ganharia novo significado à medida que a esquerda se inclinava à luta armada para enfrentar a ditadura. “Ele era muito ligado a essa questão da ação militar e achava que a derrubada do regime militar poderia ser feita imediatamente através de ações armadas. Eu até menciono, num poema que eu fiz depois da morte dele, a pistola de três canos, um em cima do outro, que ele usava e era uma memória muito intensa que a gente consolidou, porque aquela pistola era uma identidade que ele tinha, em função da visão que iria percorrer posteriormente”, diz.
Como presidente da entidade, Renato transferiu-se para a Universidade Rural do Brasil (URB) e desembarcou no Rio de Janeiro no dia 2 de março de 1964. Menos de um mês depois, viria o golpe militar.
Memórias esparsas
As lembranças da família são cortadas, esparsas. Após o golpe militar, as notícias de Luiz Renato escassearam. E hoje em dia, remexer nessas histórias é reavivar a dor da perda do irmão caçula.
Deni diz ter ouvido Renato discursando contra o golpe na rádio carioca Mayrink Veiga no dia 1º de abril de 1964. Em um programa da própria UNEA, segundo outra irmã, a Ladi. Luiz Renato e alguns colegas teriam escapado da emissora antes de serem presos pelos militares.
Após o golpe, Luiz Renato fazia aparições esporádicas na casa dos pais, sem dizer exatamente o que fazia nem por onde andava. Em depoimento prestado no Inquérito Policial Militar (IPM), depois da prisão, em março de 1966, disse que “temeroso de ser preso” abandonou a Escola Agrotécnica nos primeiros dias de abril de 1964 e voltou ao Rio Grande do Sul. Passou por São Sepé, reviu a família e teria partido para o Uruguai, assim como fizeram centenas de militantes com alguma ligação com o PTB de Leonel Brizola e João Goulart.
José Wilson da Silva, o “Tenente Vermelho”, hoje capitão do Exército reformado, diz ter conhecido Luiz Renato em Montevidéu, embora não tenha convivido com ele. “Era calmo, muito consciente politicamente, sonhador como todos nós éramos. Tanto que saiu de lá para ir adiante. Enquanto estávamos tentando fazer alguma coisa, estava demorando, foi procurar outras guerras”, conta.
Luiz Renato não era o único a se impacientar com a demora da esperada reação brizolista contra a ditadura, a partir do Uruguai. Em março de 1965, o coronel Jefferson Cardim de Alencar Osório comandou uma tentativa frustrada de guerrilha em Três Passos, desencadeando uma onda de prisões contra militantes ligados a Brizola.
Havia muitos brasileiros no Uruguai. A pedido de Brizola, o desembargador aposentado Eliseu Gomes Torres montou uma comissão para analisar os casos de quem poderia retornar ao Brasil. Torres não se lembra de Luiz Renato, mas é possível afirmar que o estudante tenha voltado em circunstância semelhante. O depoimento dado ao IPM fala que Renato “foi instado por outros a regressar, já que não pesava nenhuma acusação contra si” entre o final de janeiro e o começo de fevereiro de 1965.
Não se sabe exatamente o que fez Luiz Renato em 1965. Eventualmente, aparecia em São Sepé – Deni lembra de ir até a estrada para encontrar o irmão, de madrugada, que estava indo para algum lugar.
No IPM, consta ainda que, em fevereiro de 1966, Luiz Renato foi a Porto Alegre para tentar se matricular no Colégio São Judas Tadeu. Nesta ocasião, teria encontrado o ex-coronel Pedro Alvarez, expulso do Exército após o golpe, “a quem já conhecera em Santa Maria e em cuja residência já estivera hospedado cerca de duas vezes”.
Em 2003, Alvarez, que ainda mora na mesma casa onde hospedou Luiz Renato em 1966, a pedido do também militar José Pires Cerveira, contou: “Ele [Cerveira] me disse: ‘estou com um rapaz, um estudante que veio do Rio, e tenho impressão que já viram que ele está na minha casa. Tu não sabes onde podemos colocá-lo?’. Eu disse: ‘Faz o seguinte, numa noite dessas, em que não haja ninguém por perto, traz ele aqui pra minha casa’. Realmente ele trouxe e ficou aqui bastante tempo, mais ou menos um mês”, relatou Alvarez.
Em nova entrevista realizada em 2012, a memória já não ajuda Alvarez, hoje com 94 anos. Ele ainda lembra do “rapaz muito educado, e bem preparado. Tinha conhecimento da situação, fazia uma análise certa daquele momento, dava a solução”. O irmão Zeca lembra de ter visitado o caçula na casa de Alvarez, acompanhado por Ary, o mais velhos dos irmãos. O código era passar assoviando “Aquarela do Brasil” na calçada. A irmã Ladi conta que estava saindo de um jogo do Internacional no Beira-Rio, ao lado do marido, quando foi surpreendida por um abraço do irmão em meio ao mar de colorados. O Beira-Rio fica próximo à casa de Pedro Alvarez. Foram até uma padaria, o marido de Ladi comprou mantimentos, conversaram até a noite e se despediram.
Um dia, Alvarez teve de viajar para Santa Maria. “Eu disse: ‘Renato, faz o seguinte, não sai pra rua. Se já te viram ali na outra casa, eles podem te localizar aqui’”, contou. “Pois não é que um dia ele saiu e foi na padaria? Prenderam ele e eu não sabia onde ele estava. Até que eu consegui saber que ele estava preso no DOPS.”
O Caso das Mãos Amarradas
Preso por “ligações com o esquema subversivo de Leonel Brizola” no dia 25 de fevereiro de 1966, Renato foi recolhido ao Departamento de Ordem Política e Social. Data deste período o depoimento prestado no dia 10 de março daquele ano. Ficaria 59 dias detido, entre o DOPS e a Ilha do Presídio, pequena ilha no meio do lago Guaíba que funcionou como depósito de pólvora do Exército, laboratório para o desenvolvimento de vacinas, depois prisão de segurança máxima até finalmente ser convertida em cárcere político na ditadura militar. No dia 7 de março, o irmão mais velho de Renato levou objetos de higiene e vestuário até lá.
O próprio Ary ajudaria o irmão a sair da prisão, possivelmente lançando mão das ligações do pai com a UDN para solicitar ajuda junto à Secretaria de Segurança.
Após sair da prisão, já no Rio de Janeiro, Renato escreve uma carta a Deni, provavelmente de setembro de 1966. Conta que está fazendo um curso para trabalhar como jornalista, trata do envio de dinheiro pela família e avisa que, naquele dia, não estava com vontade de fazer mais nada porque estava abalado com uma notícia que havia recebido.
“Os filhos da puta desses traidores da Pátria mataram, afogado e com as mãos amarradas atrás, o sargento Soares, que tanto tempo esteve preso comigo, e ao qual deixei roupas, aparelho de barba e outras coisas. O assassinato foi aí em Porto Alegre e mais ou menos sei quem deu esta ordem. Esses são os homens bons que estão no governo, que vão à missa aos domingos e que durante as madrugadas torturam seus semelhantes como se fossem animais, para depois matar da maneira mais covarde possível. Quanto mais sacrifício passarem os companheiros, mais disposição nós temos para enfrentar os traidores fascistas”, escreve.
O corpo do sargento Manoel Raimundo Soares, sargento do Exército com ideias nacionalistas e militância na organização dos suboficiais, foi encontrado boiando, com mãos e pés atados, nas águas do rio Jacuí no dia 24 de agosto de 1966. O episódio ficou conhecido como o “Caso das Mãos Amarradas”. Foi um dos primeiros casos de tortura e morte por parte dos órgãos de repressão sobre o qual se teve notícia na época.
Luiz Renato dividiu a cela com Raimundo Soares duas vezes. Depois de liberado, enviou uma carta ao jornal Última Hora relatando as idas e vindas do sargento das sessões de torturas e apontando como responsáveis os delegados José Morsch e Itamar Fernandes de Souza, carta esta que seria lida em sessão da Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembleia Legislativa gaúcha que investigou o caso, no dia 12 de abril de 1967. O estudante também seria entrevistado pelo jornal, depois da publicação da carta.
O primeiro encontro entre Luiz Renato e Raimundo Soares aconteceu no dia 14 de março, em uma cela do DOPS, na rua Santa Luzia, três dias depois da prisão do sargento. Na véspera, Renato havia retornado da Ilha Presídio, onde ficou 19 dias sem ver a luz, sem tomar banho nem comer direito. Às 22 horas do dia 14 de março, conheceu o companheiro de cela. Os policiais deixaram uns trapos velhos na cela, que serviriam de cama, e logo em seguida o preso, só de cuecas, “rosto de nortista”, bigode preto e sinais de tortura no corpo, que se apresentou:
- Sou o Sargento Soares. Para minha honra, fui expurgado do Exército.
Levados à Ilha Presídio, os dois presos ficaram juntos por mais sete dias. Para aplacar o frio, já que não tinham cobertas, dividiam a mesma cama. Quando deixou a prisão, no dia 30 de março, Luiz Renato ouviu do companheiro: “No fim de tudo, nós vamos nos encontrar. Não somos os primeiros a sofrer torturas nem seremos os últimos. Se morrermos não seremos os primeiros nem os últimos. Isso faz parte da nossa luta”.
“A morte pouco importa”
De volta ao Rio de Janeiro, onde ficou pouco mais de um ano, Luiz Renato tentou retomar os estudos e arranjar trabalho. Comunicava-se por cartas com a família, algumas assinadas por “Rodrigo”.
“O que não quero é ficar parado sem fazer nada, sem trabalho e ainda sem estudar”, escreve à irmã em junho de 1966. Também dá explicações à família sobre sua opção de vida: “Sei que o pessoal não admite isto, pensam que sou irresponsável, mas o que vale é minha consciência, é fazer o que penso estar certo e é muito cedo para dar satisfações do que faço”.
Em setembro de 1966, na carta em que revela a decisão de denunciar as torturas do sargento, reafirma a decisão de seguir enfrentando a ditadura. “Este governo não é eterno, ele muda e com ele mudarão os homens, então se fará justiça, se punirá com dignidade os covardes de hoje, aos que tem coragem com as armas na mão e se tornam covardes quando se defrontam com elas. (…) Estas coisas não desanimam ninguém, pelo contrário, dão mais força e razão para se lutar, a morte pouco importa, interessa-nos é a vitória e tarde ou cedo será conseguida”.
No dia 13 de julho de 1967, informa à família que viajaria a Moscou para prosseguir os estudos. Como milhares de jovens de todo o mundo, Luiz Renato estava de partida para a Universidade da Amizade dos Povos Patrice Lumumba, batizada em homenagem ao líder anticolonialista e primeiro ministro do Congo, morto em 1961. Luiz Renato cursou o ciclo básico da instituição que recebia estudantes de todo o mundo, com a intenção de ingressar na Faculdade de Agronomia, o que acabaria não acontecendo.
Estudando na URSS
O gaúcho chegou a Moscou em setembro de 1967, prestes a completar 24 anos, e se adaptou rapidamente. Nas cartas, relata as atividades em que se envolvia, com destaque para o futebol e a pequena escola de samba que fazia apresentações em datas festivas da URSS e da universidade. “Estou muito satisfeito aqui, mesmo antes de vir para cá, já sabia mais ou menos que ia gostar. Aqui tenho estudado muito, além dos estudos da Universidade muitas outras coisas interessam-me”, escreve em 27 de novembro de 1967.
O economista Rafael Alves da Cunha, hoje vice-presidente da Sociedade de Economia do Rio Grande do Sul, também estudou na Patrice Lumumba e foi presidente da União dos Estudantes Brasileiros na União Soviética. A afinidade entre os dois gáuchos foi imediata: Rafael é natural de Caçapava do Sul, vizinha a São Sepé, e os moradores das duas cidades têm sempre na ponta da língua alguma brincadeira sobre os vizinhos.
Luiz Renato era um jovem agitado, brincalhão, festeiro, recorda Rafael. Não chegou a integrar a direção da União dos Estudantes, mas era um militante ativo a quem Rafael recorria sempre que precisava tomar alguma decisão importante. Também estava sempre disposto a participar das atividades promovidas pela entidade, como os concorridos carnavais dos estudantes brasileiros. “Podia contar com ele. Se encarregava de uma coisa, ou da cozinha, ou da bebida, pegava uma coisa, estava sempre pronto”, diz Rafael.
A disposição do colega também tinha grande valia nos jogos de futebol. “Ele era ruim de bola. Mas era gozadérrimo”, conta Rafael. “Entrava dando trombada em todo mundo. Quando botavam para marcar um cara, aquele cara não fazia nada. Ele ficava ao lado, derrubava, fazia qualquer negócio”, diz. No verso de uma foto que enviou a família, Renato contou de uma ocasião em que os brasileiros ganharam “no jogo e no pau” dos campeonatos improvisados entre os colegas de diversas nacionalidades.
Politicamente, Renato demonstrava o mesmo temperamento: não apresentava grandes formulações teóricas, mas tinha disposição para as tarefas políticas e ansiedade pelas ações, lembra Rafael: “Não dava demonstração de muito conteúdo filosófico, político. Mas tinha um entusiasmo fora do comum e uma positividade enorme. Era um guerrilheiro, tinha um espirito de guerrilha. Se eu fosse fazer qualquer coisa numa revolução, gostaria de ter um batalhão de Luiz Renato”, completa.
Com o aumento da influência cubana entre os estudantes, a universidade passou a pressionar aqueles que divergiam da linha soviética, como Renato. Um exemplo foi a tentativa de vetar a realização de um ato em memória de Ernesto Che Guevara, morto em outubro de 1967, conta Rafael. Os alunos reagiam: um dia, as janelas amanheceram tomadas por imagens do Che, reproduzidas pelos estudantes ao longo da noite, contrariando a direção. O ato finalmente aconteceu no pequeno auditório da Faculdade de Economia, transbordando de gente para fora.
As contradições entre os estudantes e a direção soviética tornaram-se ainda mais agudas com as primaveras de Paris e Praga. Em 1968, durante o Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes, em Sófia, capital da Bulgária, Luiz Renato estava entre os que participavam dos debates acalorados sobre os rumos da revolução.
“Quando voltou a delegação de Moscou [do festival], ele já estava muito marcado pelo pessoal do partidão. Aí ficou marcado dentro do sistema de vigilância soviético”, diz Rafael.
O chefe da delegação brasileira era o atual vice-prefeito de São Carlos (SP), Emerson Leal, à época vice-presidente da entidade presidida por Rafael. “Ele [Luiz Renato] era um dos defensores mais ferrenhos e combativos da luta armada. Por isso era grande sua sintonia com os estudantes da Bolívia e do Peru, muitos dos quais defendiam essa linha. Principalmente com os bolivianos – afinal, o Che Guevara tinha morrido na Bolívia e os guerrilheiros bolivianos preparavam a segunda fase da guerrilha”, lembra.
“Ele queria ver as coisas acontecerem rapidamente. O Luiz Renato, literalmente, ‘quebrava o pau’, porque achava que nossos países latino-americanos eram governados por ditadores ou por pessoas subservientes aos interesses do imperialismo. E, como dizia, a única linguagem que este ‘pessoal’ entendia, era a da luta armada, como aconteceu em Cuba”, prossegue Leal.
Um dia, Luiz Renato sumiu. “Qual não foi minha surpresa quando vi, em um jornal boliviano mostrado por colegas da Patrice Lumumba, uma foto do Luiz posando junto com outros militantes armados na Bolívia. O jornal noticiava sua morte”, recorda Leal. Tal era o entusiasmo e a radicalidade demonstradas por Renato que militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) chegavam a cogitar que ele fosse um agente infiltrado, fazendo-se passar como revolucionário para conquistar a confiança dos companheiros. De um colega do PCB, ouviu: “Imagine, e eu que pensava que o Luiz fosse um agente da direita”.
Volveremos a las montañas
O boliviano Osvaldo “Chato” Peredo estudava Medicina na Universidade Patrice Lumumba, em 1966, quando recebeu dos irmãos mais velhos, Inti e Coco, a missão de recrutar estudantes dispostos a engrossar as fileiras do Exército de Libertação Nacional, que sob a liderança de Ernesto Che Guevara iniciava sua campanha na Bolívia. Chato recorda bem o encontro com os irmãos no aeroporto de Moscou no dia 7 de novembro de 1966, um dia depois de a guerrilha do Che começar. “Eu queria ir com eles, mas me dão a tarefa de recrutar os estudantes de países socialistas”, diz.
Em setembro de 1967, quando Luiz Renato chegava a Moscou para estudar na Patrice Lumumba, Chato Peredo já havia se graduado médico e andava pelo mundo a recrutar jovens para a guerrilha. Coco morreria no mesmo mês, em combate, e Guevara, em outubro. Inti Peredo seria o principal líder do ELN e um dos cinco sobreviventes da guerrilha do Che a deixar a Bolívia rumo a Cuba, de onde no ano seguinte redigiria o manifesto, publicado em julho de 1968, no qual proclamava: “A guerrilha boliviana não morreu. Voltaremos às montanhas”.
Foi por esse período que Luiz Renato se engajou na “outra guerrilha guevarista” na Bolívia, sequência do movimento iniciado por Che. Chato não sabe precisar se conheceu Luiz Renato em Moscou. “Eu me reunia com as pessoas, e possivelmente assim foi o contato com Renato, porque não recordo o momento em que ele se incorpora”, diz.
A entrada na Bolívia, depois de um período de treinamento em Cuba e de preparação no Chile, se deu em meados de 1969. Futuros guerrilheiros e apoiadores urbanos viviam em pequenos grupos, em casas espalhadas por La Paz. Em setembro daquele ano, antes mesmo de entrar em ação, a guerrilha sofreria um duro golpe com a morte de Inti Peredo, emboscado pela polícia em uma casa onde vivia clandestinamente.
Com a morte de Inti, o dirigente estudantil e mineiro Rodolfo Saldaña assumiu a chefia do ELN, defendendo o retorno ao Chile, para reorganização do grupo. Chato passou a liderar um grupo contrário à decisão do novo comandante. O ELN sofreu novo golpe com a notícia de que os cubanos Pombo, Urbano e Benigno, sobreviventes da campanha do Che, tinham decidido ficar em Cuba em vez de participar da nova empreitada guerrilheira. Em dezembro de 1969 apenas 12 combatentes do grupo original que treinou em Cuba decidiu ficar, lembra Chato. Luiz Renato estava entre os que decidiram continuar.
“Sabíamos que não viriam nem Pombo, nem Benigno, nem Urbano, em quem nós depositamos toda nossa confiança, porque não tínhamos nenhuma experiência guerrilheira. Éramos pessoas inexperientes. Não temos armas, não temos nada, não temos recursos econômicos. Eu afirmo: o dinheiro está nos bancos. Façamos uma ação”, relata Chato.
No dia 30 de dezembro, o ELN assalta um carro forte do Bank of América, que recolhia dinheiro de algumas empresas e terminava o recorrido, naquele sábado, na Cervejaria Nacional. Luiz Renato não participou diretamente da ação. O dinheiro obtido foi utilizado na compra de armamentos e na reorganização da guerrilha, reforçada com a adesão de jovens católicos de esquerda sem nenhuma experiência em combate, o que acabaria contribuindo para a rápida derrota da guerrilha.
Mesmo na Bolívia, prestes a pegar definitivamente em armas, Renato continuou escrevendo para a família. Deni guarda duas cartas. “Na situação em que encontro-me, não é possível mandar notícias seguido”, diz o jovem, então com 26 anos, no dia 27 de junho de 1970. Respondendo à irmã, reafirma sua convicção em pegar em armas. “Como tu disseste, todos temos um ideal e por este temos que lutar, assim entendo também e lutarei até as últimas consequências”, escreve, informando ter se casado, ainda que a companheira soubesse “que poderá ficará viúva mais ou menos rápido”.
Luiz Renato se casou com Susana, militante do ELN que atuava no apoio urbano à guerrilha. Na carta de 15 de julho de 1970 (leia abaixo), pede que lhe mandem a certidão de nascimento, “para que minha mulher possa registrar o filho que deverá, dentro de uns meses, nascer”. Na mesma mensagem, anuncia, escrevendo em portunhol: “Esta possivelmente é a última vez que te escrevo. Amanhã partirei definitivamente para las montanhas, começará la guerra breve e aspiramos expandir por toda América”.
Disposto a qualquer trabalho
No dia 18 de julho de 1970, um grupo de 67 guerrilheiros partiu, em dois caminhões, para a localidade de Teoponte, situada a pouco mais de 200 quilômetros ao norte de La Paz. Bandeiras brancas com um grande “A” azul sinalizavam que aquele seria um grupo de estudantes voluntários da Campanha de Alfabetização promovida pelo governo do general Alfredo Ovando Candia. Dias antes, o próprio ditador havia entregado cartilhas e credenciais a Horácio Rueda Peña, dirigente da Confederação Universitária Boliviana (CUB) e combatente do ELN. Nos caminhões, sob as cartilhas, iam armamentos escondidos.
Luiz Renato estava na retaguarda da guerrilha comandada pelo estudante boliviano, de origem camponesa, Estanislao Vilca. Chato Peredo afirma que chegou a cogitar nomear Luiz Renato como comissário político da guerrilha, mas acabou decidido pelo boliviano Nestor Paz Amora. Renato, inclusive, teria achado melhor não ter essa incumbência, posto que era estrangeiro e não falava bem o espanhol. Ademais, não tinha pretensões de comando.
Luiz Renato é descrito como exímio atirador pelo historiador Gustavo Rodríguez, autor do livro “Teoponte – Sin tiempo para las palabras”. Já Osvaldo Peredo, que foi seu chefe na guerrilha, lembra mais de Luiz Renato como um companheiro disposto a qualquer tarefa. “Do Renato, o que posso dizer é que era um companheiro muito íntegro, disposto a qualquer trabalho e nenhuma pretensão de comando”, lembra Chato.
Chato faria um gesto de reconhecimento ao valor do combatente brasileiro na primeira ação da guerrilha. No dia 19 de julho, o ELN tomou a localidade de Teoponte, assaltou a companhia South American Places e fez reféns dois engenheiros alemães. O rolex de um deles foi dado por Chato a Luiz Renato. “Quando lhe dou o relógio, foi simbólico, como dizer ‘você está por trás de tudo isso’, porque era decidido e disciplinado”, diz Chato.
A guerrilha seria dizimada em cerca de 100 dias. O general Candia havia prometido uma guerra sem feridos nem prisioneiros, e foi mais ou menos o que ocorreu. Inexperientes, os guerrilheiros sucumbiram diante de um Exército muito mais preparado do que na época do Che. Não contavam, além disso, com o apoio da totalidade da esquerda boliviana, que discordava de uma ação guerrilheira contra um governo militar de corte nacionalista. Após o dia 7 de outubro, quando o general Juan José Torres derrubou Candia e assumiu o poder, mandou manter vivos os nove sobreviventes da guerrilha de Teoponte, entre eles Chato Peredo. Luiz Renato, no entanto, já teria sido executado.
Execução
Uma versão falsa sobre as circunstâncias da morte de Luiz Renato há mais de dez anos e é uma das últimas referências ao brasileiro nos jornais. No dia 9 de junho de 1999, o Jornal do Brasil noticiou: “O gaúcho na verdade foi justiçado, junto com outro guerrilheiro, pelos próprios companheiros cubanos e bolivianos. Os dois foram punidos com a morte porque tomaram a lata de leite condensado tirado das provisões”. Até hoje a família de Luiz Renato se incomoda com essa versão, publicada pelo jornal a partir de um equívoco.
Segundo o texto, essa revelação havia sido feita por Cláudio Gutiérrez, ex-preso político gaúcho que chegou a participar de treinamento do ELN no Chile, sem ingressar na Bolívia. Gutiérrez estava lançando o livro “A Guerrilha Brancaleone”, no qual narra sua trajetória no movimento estudantil e na clandestinidade. O episódio teria sido relatado a partir do livro “Memórias de um soldado cubano”, publicado em 1996, em que Dariel Alarcón Ramírez, o Benigno, contou que dois guerrilheiros, um deles brasileiro, haviam sido executados pela guerrilha em razão de um furto de latas de leite condensado. “Luiz Renato era o único brasileiro naquele grupo”, afirmou Gutiérrez ao Jornal do Brasil, que transformou a suposição em fato.
As circunstâncias exatas da morte de Luiz Renato nunca foram esclarecidas – não há registros oficiais -, mas a versão de que o brasileiro teria sido executado pela própria guerrilha é falsa. Em seu diário de campanha, Chato Peredo revela os nomes de guerra dos dois executados pelo próprio ELN: Ferte e Peruchín (Federico Argote Zuñiga, boliviano, e Carlos Brain Pizarro, chileno). O fato aconteceu no dia 26 de setembro, quando Luiz Renato já havia se perdido do restante da guerrilha.
“Foi o exército que o fuzilou. Foram dois companheiros que foram justiçados, porque roubaram a reserva estratégica, roubaram dinheiro e abandonaram os companheiros que haviam ficado ali, esperando o que nós, que estávamos na vanguarda, podíamos conseguir”, disse Chato Peredo em entrevista realizada em 2007. Na entrevista do dia 24 de maio deste ano, em sua clínica médica também em Santa Cruz, reforçou que considera a tese fantasiosa.
No dia 1º de agosto de 1971, cerca de dez meses após o fim da guerrilha, o jornal boliviano El Diário publicou uma reportagem intitulada “Los caídos y verdugos de Teoponte”, difundido pela agência cubana Prensa Latina e assinado por um certo Ariel Rojo, provavelmente um pseudônimo. Trata-se de um relato de como ocorreram as execuções de vários guerrilheiros, entre eles Luiz Renato. Para Gustavo Ostría, entrevistado para esta reportagem em Santa Cruz de la Sierra, uma das hipóteses é que a informação tenha saído de dentro do próprio Exército, durante governo de Juan José Torres, e escrita por algum membro do ELN.
Embora nunca tenha sido comprovado, é um relato plausível e rico em detalhes, do que teria acontecido no dia 26 de setembro de 1970, um dia depois, portanto, do último registro no diário de Luiz Renato. Um camponês do povoado de Yaycurá teria revelado que dois guerrilheiros – nomes de guerra Eugenio e Raúl – estavam no povoado de Masapa, “em muito más condições”. A dupla de combatentes do ELN teria sido traída por “boteros” (barqueiros), aos quais haviam dado dinheiro e seus relógios em troca de serem levados para algum povoado não patrulhado pelos militares. “Mas depois de terem recebido o pagamento, os deixaram em Masapa, povoado que estava a 20 quilômetros de nosso acampamento”, diz o relato.
Antero e Luiz Renato teriam sido presos e levados para o acampamento militar, em Yaycurá, no dia 2 de outubro. No dia seguinte, chegou “um helicóptero para trasladar os prisioneiros à sua última morada, que seria em San Jorge, povoado próximo a Mapiri”, na região de Teoponte.
Às 11h25 da manhã de 2 de outubro de 1971, segundo o relato, Raúl tentou fugir e foi ferido por um soldado. “Eugenio, que estava no chão, sem forças para nada, grita desesperadamente que não o matem, mas o mesmo soldado abre fogo contra ele”, diz o texto. “Raúl e Eugenio caem no chão, queixando-se de dor. Os soldados disparam até acabar com suas vidas”.
Assinando como Carla, Susana escreve uma carta para Deni no dia 25 de janeiro de 1971. “Francamente, não sei como começar esta carta inacreditável”, começa. “Há quatro dias, me asseguraram que Luiz Renato morreu, possivelmente fuzilado pelo Exército”, diz Susana, que conta ainda que o filho deles nasceria “dentro de dois meses”.
Ausência de informações
Não se sabe onde foram enterrados os restos mortais de Luiz Renato, assim como os de vários outros guerrilheiros. Em fevereiro de 2010, o governo Evo Morales entregou aos familiares os restos mortais de quatro guerrilheiros. O trabalho foi realizado pela Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF), com ajuda de pesquisadores bolivianos, entre eles Gustavo Rodríguez Ostría, mas não prosseguiu.
Os arquivos militares do período na Bolívia são fechados. O historiador Gustavo Rodríguez Ostría, que chegou a ser vice-ministro de Educação da Bolívia, conseguiu manusear alguns documentos relacionados à guerrilha durante a pesquisa para seu livro. Entre eles, algumas folhas datilografadas com a transcrição do que seria uma parte do diário de Luiz Renato – com registros esporádicos que, pelo que estava escrito, eram mesmo do brasileiro.
A Associação de Familiares de Detidos, Desaparecidos e Mártires da Libertação Nacional (ASOFAMD) tentou levar adiante um projeto de lei para a abertura dos arquivos militares, mas nunca obteve uma sinalização positiva do governo. “Neste momento, não convém ao governo se indispor com as Forças Armadas”, lamentou Luis Alberto Aparício, presidente da Asofamd, durante conversa em maio na sede da entidade, em La Paz.
Chato Peredo disse ter enviado duas cartas para o presidente Evo Morales, solicitando a abertura dos arquivos militares. “Mas se vê que no Exército há uma resistência grande, porque significa ratificar a imagem de um Exército de fuziladores. Seguramente muitos documentos estão aí, ou estão desaparecendo. E creio que nisso não tem a decisão o presidente Evo Morales de dizer, bueno, descodifiquem. Não me respondeu”, afirmou Chato.
O Ministério da Defesa e o gabinete de Evo Morales não responderam as solicitações de informações para esta reportagem.
O contato com Susana, companheira de Renato na Bolívia e mãe de Mabel, aconteceu já quase no encerramento da reportagem. Na manhã do dia 24 de julho de 2012, Susana atendeu o telefone na Inglaterra, onde vive. Foi solícita, mas não quis dar entrevistas. Limitou-se a dizer: “Prefiro não tocar neste assunto, que dói muito em meu coração. A família de Luiz Renato tem todas as informações e creio que eu não teria mais a acrescentar. Não gostaria que meus sentimentos fossem publicados. É um tema muito doloroso para mim”.

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