#CADÊ MEU CHINELO?

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

[jota péguiz] MENSÁLLICA


[cc] JORNALISMO DIGITAL AINDA BRIGA POR MILHADAS

:: txt :: Cleyton Carlos Torres ::

 Seja um tradicional jornal brasileiro ou uma consagrada revista norte-americana, o fato é que anúncios de grandes veículos de comunicação sobre o fim do uso do papel ainda incomoda muita gente. Deixemos de lado posicionamentos políticos ou mesmo as afirmações de que essas atitudes são recheadas apenas de intenções de cortes no quadro de jornalistas. O jornalismo digital ainda briga por migalhas.

Diversos profissionais batem o pé e insistem que o verdadeiro jornalismo só pode ser feito em papel. Abominam os reais benefícios do digital e tentam abafar a real pergunta que deve ser feita nesses casos: qual é o problema de extinguir o impresso e partir única e exclusivamente para o digital? Se o futuro do jornalismo é digital, de qualidade e global, como recentemente colocou o diretor-presidente do New York Times, Arthur Sulzberger Jr., não há o menor empecilho em tentar expandir os tentáculos de alcance de uma mídia.

O digital requer investimentos diferenciados e possibilita que o veículo trabalhe praticamente todas as vertentes de comunicação: texto, vídeo, áudio, infográficos, games, acervos com acesso irrestrito e dezenas de outros formatos que transformam um jornal impresso em um verdadeiro portal jornalístico capaz de produzir muito mais conteúdo para um público muito mais e, principalmente, sem jamais deixar de lado a sua bandeira, que leva consigo credibilidade e reputação.

Uma briga por migalhas

No lugar de investirem pesadamente no digital, já que o consumo de impresso só cai e o acesso à internet em escala global só aumenta, muitos profissionais reacionários preferem entrar em conflitos ideológicos com o argumento – muitas vezes único – de que o que está realmente em conta são os empregos, e não a expansão do jornal.

Na outra ponta dessa situação temos centenas de jornais pelo mundo pedindo que o Google pague pelos seus conteúdos exibidos. Ora, se o maior mecanismo de busca do planeta resolver não mais exibir os respectivos conteúdos, o que pode acontecer de imediato é que muitos sites e portais simplesmente despencarão das pesquisas e terão seus conteúdos “apagados”. Com isso, o tráfego orgânico de muitos irá simplesmente desaparecer e um novo trabalho dentro dos jornais deverá ser feito: “Se não estamos no Google, nós ainda existimos?”

O debate aqui, neste contexto, vale mais pela importância que o gigante da internet tem a nos oferecer. Com os resultados, ganha o Google, ganham os jornais e ganha o usuário, que realiza as pesquisas e recebe uma gama gigantesca de informações para escolher. Sem os resultados, perde o Google, perdem os jornais e, principalmente, perdem os usuários, que não encontrarão tais resultados.

No lugar de produzir algo mais interessante para o digital, muitos jornais preferem manter o impresso. No lugar de andarem de mãos dadas com o Google, muitos jornais preferem simplesmente ignorar o maior mecanismo de buscas do mundo. O jornalismo digital ainda briga por migalhas. Visto de longe tudo parece mais um emaranhado tão complexo que muitas vezes remete à sensação de que nada poderá ser feito. E algumas vezes isso não passa da mais pura verdade.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

[agência pirata] QUEDELE O MUNDO PLANO?

:: txt :: Cássio Prates ::

 Sou do tempo que classe C era composta por empregada, professores que se vestiam mal e (coitados) precisavam ir para escolas particulares enfrentar a sagacidade de alunos mimados e por pessoas que falavam “quedele” no lugar de cadê. Desde esse tempo todo mundo estava enganado.

 Só que esse tempo mudou. Ou não, como diz todo o pseudointelectual classe C.

 Mudou porque não se fala em outra coisa que não seja a ascensão da classe, do efeito Lula, da glória do Divino da novela em  HD e  da profissão do momento: empreguete.

 Ou não! Porque, vamos combinar: não mudou muita coisa assim!

 Fico um pouco constrangido com esse over aparecimento da classe C, que não diz quase nada. Com essa nova mania das empresas que precisam entender a classe C. Entender o quê?

 Em primeiro lugar, a classe C, economicamente falando, é a maioria do país e não um clã de índios que mora pra lá do ABC paulista.

 Em segundo porque, para entender, é preciso se igualar e não apontar o dedinho com nojo!

 E em terceiro, e não menos importante, porque todo e qualquer brasileiro é bem classe C e tem gostos de pobre. A Tiffany no Brasil é a única do mundo que parcela, quase assim como o crediário das Casas Bahia. Só que brasileiro não se admite e segue vivendo num efeito Caco Antibes, com horror de pobre.

 Não questiono ninguém “odiar pobre”. Cada um odeia quem quiser. O que questiono é uma frase, que ouvi há muitos anos atrás [e não sei de onde saiu], que diz que o “bom gosto é sempre muito parecido com o nosso”. E quem odeia pobre também compra em prestação e adora o cajuzinho da festa do clube, que não é igual ao de pobre, claro. E assim, ninguém vê que de médico e classe C, todo mundo tem um clichê.

 O Brasil é um país com uma gigantesca pluralidade cultural que nem a gente conhece e acho que isso é o que ele tem de  melhor para oferecer ao mundo [ que não para de olhar para cá]. Só que isso é o que ele menos oferece para ele mesmo, pois pasteuriza tudo, como coisa de pobre ou coisa de rico. Como cafona e com o não cafona. Só que se esquece de que o cafona é o que há de mais in e rico por aqui!

 Tem aquele livro que diz que o mundo é plano e que com a globalização estamos todos iguais. Bem, bem parecidinhos. Tudo bem. Concordo que o mundo é plano, mas que ele tem umas quebradas, ah, ele tem! E isso me faz fazer um link com o que acho mais crucial para essa analise: uma palavrinha chamada cultura.

 Todos sabemos que a cultura existe para dominantes e dominados e que aí, sim, quem manda é quem tem mais poder. E que nesse quesito, não se discute, se lamenta, assim como gosto! O Chacrinha dizia muito bem isso, quando comentava que quem gosta de pobreza é intelectual porque pobre gosta mesmo é de riqueza. Aí que a coisa complica, já que vivemos em um país multicultural, multirracial, plurirreligioso que está sendo pasteurizado com a cara do Divino. Tem muito mais, gente! Tem muito mais coisas para mostrar. Quedele o hip hop de raiz? Quedele as iniciativas legais? E a alegria de viver? E o pior: quedele o Leblon? É o que clamam alguns “índios integrantes da classe C”.

 Quedele o bom gosto? Será que ele é muito parecido com o nosso para ser classe C?

 Infinitamente mais importante que apresentar a classe C na novela de maneira sensacionalista é entender que o Brasil é classe C e que isso é o mais legal que ele pode oferecer para quem quiser ver. Que isso é criatividade, e mais, que isso é a nossa cultura!

 Eu adoro a novela e acho que isso pode ser um começo para ir além e mostrar o pouco de tudo que temos nesse mundão gigante chamado Brasil. E que talvez, só assim, mostrando o bom gosto do Brasil, a nossa cultura se eleve um pouco.

 E o nosso ego de não pertencer a nada disso, baixe bem mais!

 Fui lá ver a Carminha! E quedele a minha mega TV que não chega?!

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

[domínio público] CONVERSAS COM MR. DOPS

:: txt :: Marina Amaral ::

 Aos 80 anos, José Paulo Bonchristiano conserva o porte imponente dos tempos em que era o “doutor Paulo”, delegado do Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo, “o melhor departamento de polícia da América Latina”, não se cansa de repetir.“O DOPS era um órgão de inteligência policial, fazíamos o levantamento de todo e qualquer cidadão que tivesse alguma coisa contra o governo, chegamos a ter fichas de 200 mil pessoas durante a revolução”, diz, referindo-se ao golpe militar de 1964, que deu origem aos 20 anos de ditadura no Brasil.

 Embora esteja aposentado há 27 anos, não há nada de senil em sua atitude ou aparência. Os olhos astutos de policial ainda dispensam os óculos para perscrutar o rosto do interlocutor, endurecendo quando o delegado acha que é hora de encerrar o assunto.

 Bonchristiano gosta de dar entrevistas, mas não de responder a perguntas que lancem luz sobre os crimes cometidos pelo aparelho policial-militar da ditadura do qual participou entre 1964 e 1983: prisões ilegais, sequestros, torturas, lesões corporais, estupros e homicídios que, segundo estimativas da Procuradoria da República, vitimaram cerca de 30 mil cidadãos. Destes, 376 foram mortos, incluindo mais de 200 que continuam até hoje desaparecidos.

 Os arquivos do DOPS se tornaram públicos em 1992, mas muitos documentos foram retirados pelos policiais quando estavam sob a guarda do então diretor da Polícia Federal e ex-diretor geral do DOPS, Romeu Tuma. Entre os remanescentes estão os laudos periciais falsos, produzidos no próprio DOPS, que transformavam homicídios cometidos pelos agentes do Estado em suicídios, atropelamentos, fugas. No caso dos desaparecidos, os corpos eram enterrados sob nomes falsos em valas de indigentes em cemitérios de periferia.

Globo, Folha, Bradesco – e Niles Bond

 Bonchristiano é um dos poucos delegados ainda vivos que participaram desse período, mas ele evita falar sobre os crimes. Prefere soltar o vozeirão para contar casos do tempo em que os generais e empresários o tratavam pelo nome. Roberto Marinho, da Globo, diz, “passava no DOPS para conversar com a gente quando estava em São Paulo”, e ele podia telefonar a Octávio Frias, da Folha de S. Paulo “para pedir o que o DOPS precisasse”. Quando participou da montagem da Polícia Federal em São Paulo, conta, o fundador do Bradesco mobiliou a sede, em Higienópolis: “Nós do DOPS falamos com o Amador Aguiar ele mandou por tudo dentro da rua Piauí, até máquina de escrever”.

 O “doutor Paulo” sorri enlevado ao lembrar dos momentos passados com o marechal Costa e Silva (o presidente que assinou o AI-5 em dezembro de 1968, suspendendo as garantias constitucionais da população). “O Costa e Silva, quando vinha a São Paulo, dizia: ‘Eu quero o doutor Paulo Bonchristiano’”, e imita a voz do marechal – ele adora representar os casos que conta.

 “Eu fazia a escolta dele e ele me chamava para tomar um suco de laranja ou comer um sanduíche misto na padaria Miami, na rua Tutóia, vizinha ao quartel do II Exército. Todo mundo querendo saber onde estava o presidente da República, e eu ali”, delicia-se.

 Gaba-se de ter sido enviado para “cursos de treinamento em Langley” nos Estados Unidos, pelo cônsul geral em São Paulo, Niles Bond, que admirava a “eficiência” da polícia política paulista. E o chamava de “Mr. Dops”.

 Orgulha-se também de outro apelido – “Paulão, Cacete e Bala” – que diz ter saído da boca dos “tiras” quando “caçava bandidos” na RUDI (Rotas Unificadas da Delegacia de Investigação), no início da carreira, com um “tira valente” chamado Sérgio Fleury. Anos depois, os dois se reencontrariam na Rádio Patrulha, de onde saiu a turma do Esquadrão da Morte, levada para o DOPS em 1969, quando Fleury entrou no órgão.

 “Polícia é polícia, bandido é bandido”, diz Bonchristiano. “Para vocês de fora é diferente, mas para nós, acabar com marginal é uma coisa positiva. O meu colega Fleury merecia um busto em praça pública”, afirma, sem corar.

 O delegado Sérgio Fleury e sua turma de investigadores se celebrizaram por caçar, torturar e matar presos políticos no DOPS, enquanto continuavam a exterminar suspeitos de crimes comuns no Esquadrão da Morte.

Conversas gravadas

 No decorrer de nove tardes passadas, entre junho de 2011 e janeiro deste ano, em seu apartamento no Brooklin, no 13º andar de um prédio de classe média alta, aprendi a escutar com paciência os “causos” que “doutor Paulo” narra com humor feroz, até extrair informações relevantes. Repetidas vezes eu as confrontava com livros e documentos e voltava a inquiri-lo; a proposta era que ele se responsabilizasse pelo que dizia.

 De certo modo, meu embate com o “doutor Paulo” antecipava as dificuldades que serão enfrentadas pela Comissão da Verdade, a ser instalada em abril para apurar fatos e responsáveis – sem punição penal prevista – pelas violações de direitos humanos cometidas pelo Estado entre 1946 e 1988, abrangendo o período da ditadura militar. O objetivo da comissão é devolver aos cidadãos brasileiros um passado que ainda não se encerrou, como provam os desaparecidos, e impedir que funcionários públicos sigam mantendo segredo sobre atos praticados a mando do Estado.

 A fragilidade da lei em pontos cruciais, porém, provoca ceticismo nas organizações de direitos humanos, em especial ao permitir o sigilo de depoimentos – ferindo o direito à transparência pública –, e ao não prever punições aos responsáveis pelos crimes, nem mesmo medidas coercitivas para os que se recusarem a depor.

 “Não vou depor. Acho bobagem”, diz Bonchristiano. “Nunca pratiquei irregularidades, mas não sou dedo duro e não vejo utilidade nessa comissão”, justifica o funcionário público, aposentado aos 53 anos, e que recebe hoje 11 mil reais por mês de pensão.

 Minhas conversas com Mr. DOPS renderam 15 horas de gravação que revelam a mentalidade e as conexões políticas dos policiais que atuaram na repressão do governo militar. E provam que os detentores das informações estão por aí – embora continuem ocultando as circunstâncias exatas em que os crimes foram cometidos e os mandantes de cada um deles.

Torturadores e repressores

 O nome de Bonchristiano – que significa “bom cristão” e veio de Salerno, Itália – não consta das principais listas de torturadores compiladas por organizações de direitos humanos.

 O Projeto Brasil Nunca Mais, um extenso levantamento realizado clandestinamente entre 1979 e 1985 com base nos IPMs (inquéritos policiais militares), é até hoje a principal referência, embora muitas vezes liste apenas os “nomes de guerra” dos torturadores, já que os reais eram desconhecidos das vítimas.

 No tomo II, volume 3, “Os funcionários”, Paulo Bonchristiano é citado oito vezes em operações de repressão. Mas seu nome também não consta da chamada Lista de Prestes, de 1978, liberada recentemente pela viúva do líder comunista, que traz vários nomes completos e os cargos de 233 torturadores denunciados por presos políticos – entre eles 58 policiais do DOPS de São Paulo, 21 deles delegados.

 As lacunas dessa história, porém, não permitem descartar a revelação de novos nomes. Entre 1968 e 1976 – o período mais duro da ditadura –, as torturas faziam parte do cotidiano de todos os policiais e militares envolvidos na repressão. O DOPS era “manejado pelos militares como um órgão federal”, como observa o jornalista Percival de Souza no livro “Autópsia do Medo”, do qual o Paulo Bonchristiano participa como fonte e personagem, qualificado como “um dos delegados mais conhecidos do DOPS”.

 Nas entrevistas à Pública, o ex-delegado resistiu duas tardes inteiras antes de admitir que se torturava e matava no “melhor departamento de polícia da América Latina” – o que hoje qualquer cidadão pode constatar através dos depoimentos reunidos no “Memorial da Resistência”, museu que desde 2002 ocupa as antigas instalações do DOPS, no centro de São Paulo.

 Nem mesmo o fato de Sérgio Fleury ter se celebrizado como torturador impediu Bonchristiano de tentar isentar o órgão: “O Fleury era do DOPS e não era do DOPS, era o homem de ligação do DOPS com os militares, era delegado das Forças Armadas, do Alto Comando. Não obedecia a ninguém, interrogava presos no DOPS, no DOI-CODI, em delegacias, sítios, no país inteiro. Todo o segundo andar do DOPS era dele, tinha que telefonar antes: ‘Fleury eu vou descer pra falar com você’. Se não, a gente não entrava. Ele tinha uma porta lá, todo misterioso”.

Bonchristiano ainda se lembra, e muito bem, das antigas desavenças com o ex-colega.

 “O Fleury estava em todas, se metia em tudo, perdi muitos ‘tiras’ para ele porque lá eles ganhavam mais, tinha um ‘por fora’”, contou na segunda entrevista. “Uma vez prendi um cara em um aparelho no Tremembé, e quando estava chegando no DOPS, o Fleury pediu o preso emprestado, não lembro o nome dele. Depois de dois dias sem notícias do preso, fui perguntar para o Fleury, e ele me pediu desculpas, tinha matado o cara que eu nem ouvi”, relata, como se fosse um contratempo na repartição. “Chegou uma hora que só ele que dominava. Só se falava dele”.

 “Graças a Deus só se fala no Fleury”, reagiu dona Vera, a elegante senhora com quem o ex-delegado é casado há 53 anos, que entrava na sala trazendo refrigerantes. E emendou: “Zé Paulo, essa entrevista já não está durando demais?”, frase que ela repetiria muitas vezes depois.

 Foi na terceira entrevista – quando já acumulávamos seis horas de gravação – que o “doutor Paulo”, sem dona Vera na sala, finalmente confirmou que “sabia de tudo” o que acontecia no DOPS. E se “justificou”:  “Eu não podia fazer nada, isso era com o pessoal de lá de cima. Eu era delegado de segunda classe, respondia apenas ao diretor do DOPS, o resto era com eles”.

 Bonchristiano tornou-se delegado de 2ª classe em 1969 e foi promovido “por merecimento” a delegado de 1ª classe em 1971.

 Naquele mesmo dia, admitiu que frequentava os outros centros de tortura montados em São Paulo a partir de 1969, como a OBAN (Operação Bandeirante)  e o DOI-CODI, comandados pelo Exército e compostos de policiais civis e militares instruídos a torturar. Só no período de 1970 a 1974, a Arquidiocese de São Paulo reuniu 502 denúncias de tortura no DOI-CODI paulista, apelidado jocosamente pelos policiais de “Casa da Vovó”.

 Bonchristiano disse então que “alguns da diretoria do DOPS” participaram da montagem da OBAN – “os militares não entendiam nada de polícia, depois aprenderam” – e que cederam três delegados no início das operações, todos incluídos entre os torturadores na Lista de Prestes: Otávio Medeiros, ligado ao CCC (Comando de Caça aos Comunistas) e à TFP (Tradição, Família e Propriedade), assassinado em 1973 por militantes da resistência armada; Renato d’Andrea, colega de Bonchristiano na Faculdade de Direito da PUC; e Raul Nogueira de Lima, o Raul Careca, ex-investigador subordinado a Bonchristiano e ligado ao CCC, que se tornaria delegado depois.

 Levaram também os métodos da polícia, incluindo o pau-de-arara – na origem um cabo de vassoura apoiado em duas mesas, onde os policiais deixavam o preso pendurado por pulsos e tornozelos até que a dor insuportável os fizesse “confessar”.

 “O pau-de-arara não é, assim, uma tortura, vai tensionando os músculos, se o cara falar logo não fica nem marca, mas se o cara for macho e segurar…”, explicou-me ele certa vez. Diante de minha expressão escandalizada, concedeu: “choques, sim, dependendo”. E completou: “Naquela época foi diferente, o governo estava tentando melhorar o país. Aí nós tivemos que fazer essa luta. Nunca considerei os comunistas bandidos, considerava ideologicamente inimigos. Tanto que eu sempre falei, não poderia haver mortes”.

 Bonchristiano disse que frequentava a OBAN e o DOI-CODI para “buscar presos, não para levar”, buscando distanciar-se das mal afamadas equipes de captura da OBAN, que realizavam prisões ilegais. Alguns eram soltos sem que sua passagem nos órgãos policiais fosse sequer registrada; outros eram enviados para os cárceres do DOPS, onde assinavam as “confissões” e tinham a “prisão preventiva” decretada.

“Maçã Dourada”, os paramilitares e o DOPS

 Em seus primeiros anos no DOPS, Bonchristiano se especializou em infiltrações em movimentos sindicais, mas a partir de 1968 os estudantes se tornaram prioridade. “Quem faz revolução é estudante, operário faz revolução na Rússia”, costumava dizer.

 Uma das operações das quais mais se orgulha, que o levou às páginas de revistas e jornais, foi o desmantelamento do Congresso da União Nacional dos Estudantes em Ibiúna, em 12 de outubro de 1968, comandado por ele. “Prendi 1263 estudantes sem disparar um tiro”, diz – embora os policiais do DOPS e da Força Pública de Sorocaba tenham comprovadamente anunciado sua chegada com rajadas de metralhadora para o ar. “Coloquei a garotada em 100 ônibus cedidos pela (viação) Cometa e levei todo mundo para o DOPS. Separei os líderes e liberei o resto para ir para casa. Não tínhamos vontade de matá-los, eram estudantes”, ironiza.

 Entre os 11 líderes que Bonchristiano mandou para o Forte de Itaipu, em Santos, estão os ex-ministros Franklin Martins e José Dirceu, e o líder estudantil Luiz Travassos, já falecido.

 “Eu sabia tudo o que o Dirceu fazia porque ele era metido a galã e eu coloquei uma agente nossa para seduzi-lo”, gaba-se o delegado. “Ela era muito bonita, a Maçã Dourada, e me contava todos os passos dele”, diz o delegado. A “estudante” Heloísa Helena Magalhães, uma das 40 moças contratadas pelo DOPS para esse tipo de serviço, segundo ele, chegou a ser secretária de Dirceu na UNE (na verdade, José Dirceu foi diretor da UEE).

 Dias antes, havia acontecido o famoso embate entre estudantes de direita reunidos no Mackenzie e estudantes da Faculdade de Filosofia da USP, na rua Maria Antonia, base de resistência contra a ditadura. Pelo lado da direita, os conflitos foram publicamente liderados por João Marcos Flaquer, fundador do CCC, organização paramilitar idealizada por Luís Antonio Gama e Silva, o jurista que redigiu o AI-5 após se afastar da reitoria da USP para assumir o Ministério da Justiça de Costa e Silva.

 Flaquer não era do Mackenzie – estava no último ano de Direito na USP – e dividia o comando dos combates com Raul Nogueira de Lima, o Raul Careca, “tira” do DOPS, subordinado a Bonchristiano. Oficialmente, a polícia só entrou no campus no segundo dia de conflitos, depois que um tiro, atribuído a um membro do CCC, Ricardo Osni, atingiu um estudante secundarista. Mas, segundo Bonchristiano, havia outras forças por trás dos conflitos:

 “Foi o João Marcos que fundou o CCC e salvou os estudantes de passarem todos para o comunismo, por isso os americanos também gostavam dele”, diz o ex-delegado. “Ele tinha uma capacidade fabulosa, era forte demais, um cara fora de série, muito meu amigo. Eu o conhecia desde o segundo ano da faculdade, ele queria ser delegado mas a família dele era muito rica e não o queria metido com polícia, então ele vinha para o DOPS comigo. Ele dirigia toda essa parte de estudantes, infiltrava gente entre os esquerdistas. Se tinha alguma coisa que interessava ao DOPS, ele fazia. Mas só com minha anuência”, gaba-se o ex-delegado, que diz participado do planejamento do conflito.

 O CCC começou com cerca de 400 membros e chegou a reunir 5 mil homens – boa parte deles militares e policiais. Andavam armados, espancavam estudantes e artistas que se opunham à ditadura e seus atentados mataram pelo menos duas pessoas.

 João Marcos Flaquer, Ricardo Osni, João Parisi Filho e José Parisi, “estudantes” do CCC, eram colaboradores do DOI-CODI e constam da lista de torturadores do Brasil Nunca Mais.

 Os dois primeiros, bem como o mentor Gama e Silva, também participavam de encontros que reuniam policiais da CIA e do DOPS. “A especialidade da CIA era fomentar organizações paramilitares como o CCC. Acho bem possível que eles recebessem, além de apoio, dinheiro”, diz a socióloga Martha Huggins, da Tulane University, New Orleans, pesquisadora de programas de treinamento de policiais estrangeiros pela CIA.

Afinidades eletivas: o DOPS e a CIA

 Bacharel de Direito pela PUC-SP, filho de uma farmacêutica e um bancário, José Paulo Bonchristiano não entrou na polícia política por acaso. Ele e a turma de amigos da faculdade – seis deles futuros delegados do DOPS – eram anticomunistas viscerais e católicos conservadores, e representavam a direita no centro acadêmico 22 de agosto.

 Esse perfil agradava ao experiente delegado Benedito de Carvalho Veras, que os recrutou em 1957 quando cursavam o último ano de Direito e faziam estágio na polícia. Veras, que se tornaria secretário de segurança do governador Jânio Quadros no ano seguinte, estava à procura de quadros para modernizar a polícia, sob orientação do Programa do Ponto IV – idealizado  pelo presidente americano, Harry Truman, com o objetivo de prevenir a “infiltração comunista”. Isso se traduzia na combinação de ajuda econômica e treinamento das forças policiais dos países da região.

 A intenção era “profissionalizar” a polícia brasileira – sobretudo os que lidavam com crimes políticos e sociais – para que barrassem o comunismo sob qualquer governo.

 No mesmo ano em que Veras assumia a secretaria de segurança e nomeava Bonchristiano como delegado substituto de polícia, uma deputada (Conceição da Costa Neves, do PTB, que fazia oposição ao então governador Jânio Quadros) denunciava publicamente ter sido vítima de um grampo telefônico. “Foi o primeiro grampo que se tem notícia em São Paulo”, conta o ex-delegado, que conheceu de perto o autor da “inovação tecnológica”, o escrivão Armando Gomide, futuro agente do Serviço Nacional de Informações (SNI). Gomide havia aprendido o “grampo” com os instrutores do Ponto IV, que também forneceram equipamentos para melhorar a qualidade das gravações.

 Em 1962, o programa passou a ser dirigido pelo OPS – Office of Public Safety – uma “célula da CIA incrustrada dentro da AID (Agency for International Development, no Brasil, mais conhecida como USAID)”, nas palavras da professora Martha Huggins.

 Além de treinar 100 mil policiais no Brasil, a OPS-CIA selecionava policiais e oficiais militares para estudar em suas escolas no Panamá (1962-1964); e nos Estados Unidos, depois que a Academia Internacional de Polícia (IPA) foi inaugurada em 1963 em Washington, funcionando até 1975. No Brasil, o OPS ficou até 1972, quando o Congresso americano começou a investigar as denúncias de que o programa patrocinava aulas de tortura.

 A IPA foi um das “escolas” nos Estados Unidos que recebeu Bonchristiano antes mesmo do golpe militar. Dois anos antes – logo depois de ser aprovado no concurso para delegado de 5ª classe, o início da carreira, ele já frequentava a casa do diretor DOPS Ribeiro de Andrade, no Jardim Lusitânia, em São Paulo. “Ele estava sempre de portas abertas para nós, ficávamos lá conspirando”, ironiza.

 Foi ali que Bonchristiano conheceu o policial americano Peter Costello, que veio para o Brasil em 1962 como instrutor da OPS depois de treinar 2.500 homens em técnicas de controle de distúrbios na Coréia. “Era um sujeito austero, falava português e entendia de polícia, deu curso de algemas, tiro rápido e outros para os policiais do DOPS, conta, completando: “Alguns meninos do CCC também participaram”.

 Antes de 1964 os delegados do DOPS já contavam com a ajuda dos americanos para identificar os “comunistas”, muitos deles presos logo depois do golpe. “A ordem que a gente tinha desde o começo era identificar e prender todos os comunistas. Queríamos acabar com o Partido Comunista”, diz Bonchristiano.

 Para contribuir com essa missão, “o Ponto IV nos contemplou com fotografias dos frequentadores (brasileiros) dos cursos de guerrilha na China”, relatou Renato d’Andrea, um dos delegados que foram da turma de Bonchristiano na PUC, ao jornalista Percival de Souza.

 Na primeira operação importante que Bonchristiano realizou no DOPS, em abril de 1964, foi a vez de retribuir, entregando aos americanos as 19 cadernetas apreendidas na casa do líder comunista Luiz Carlos Prestes. As cadernetas foram xerocadas nos Estados Unidos (aqui ainda não existia o xerox) e retornaram 15 dias depois para o Brasil, servindo de base para a prisão de diversos militantes comunistas.

 Só sobraram as cópias das cadernetas de Prestes, hoje nos arquivos do DOPS – os originais, segundo o “doutor” Paulo, desapareceram. Por aqui as cadernetas serviram de base a um dos maiores IPMs da primeira fase da ditadura, e foram usadas como justificativa para a prisão de diversos militantes comunistas como Carlos Marighella, que o próprio Bonchristiano foi encarregado de conduzir a São Paulo, depois que ele havia sido preso e baleado em um cinema no Rio, em 1964. Solto em 1965, Marighella foi assassinado em uma emboscada de policiais do DOPS em 1969.

 “É uma bobagem danada dizer que a CIA mandava no DOPS, que nós éramos agentes da CIA, não era nada disso, nós éramos delegados do DOPS”, resmunga o doutor Paulo. “A América do Sul sempre foi o quintal dos Estados Unidos, e eles olhavam muito para nós, tinham medo do Brasil se tornar comunista. E notaram que tinha um departamento de polícia em São Paulo que trabalhava firme nisso. Porque o DOPS de São Paulo fazia todos os levantamentos que conduzissem a algum elemento do Partido Comunista em todo o Brasil, na América Latina inteira”.

Mr. Dops e Mr. Bond

 “Depois que o presidente Truman criou a CIA, era a CIA que acompanhava o movimento dos subversivos”, continua. “Então trabalhávamos juntos, viajávamos juntos em muitos casos, mas nossas reuniões eram fora do DOPS, na happy hour de bares de hotéis como o Jandaia e o Jaraguá, no centro de São Paulo. O Fleury também ia, o Flaquer, o Gama e Silva e até o Carlos Lacerda (ex-governador do Rio, que conspirou pelo golpe e acabou sendo cassado em 1968). O Niles Bond era chefe lá deles, sujeito bacana, conhecia bem o Brasil, e gostava muito de mim. Me chamava de Mr. Dops, porque eu sempre o atendia em tudo que precisava e era ele que me mandava para Langley”, frisa mais uma vez, mostrando uma foto sua com trajes de George Washington ao lado de um colega fantasiado de soldado federalista, tirada durante uma de suas estadas em Washington (FOTO).

 “Não lembro quando foi tirada porque estive oito vezes em cursos de treinamento nos Estados Unidos (entre 1963 e 1970)”, diz ele. “Fiz cursos técnicos, de polígrafo, técnicas de inteligência, infiltração. E sobre o comunismo também, eles tinham verdadeira obsessão. Saí de lá convencido de que eles, sim, são duros, fazem o que for preciso para garantir seus princípios”.

 Entre 1959 e 1969, Niles W. Bond foi adido da embaixada no Rio e cônsul geral em São Paulo, segundo seu currículo na Association for Diplomatic Studies and Training, que também aponta a ligação com a CIA desde 1956, quando era assessor político da embaixada italiana.

 Langley, frequentemente usado como sinônimo de CIA nos Estados Unidos, é o nome dos arredores da pequena cidade de McLean, na Virginia, onde desde o início da década de 1960 ficam os “headquarters” da agência de inteligência americana, a alguns quilômetros de Washington.

 Com o tempo, descobri que quando o doutor Paulo se referia a Langley, significava que estava em treinamento em instalações na CIA, não apenas na sede, mas “em muitos outros lugares, até na Flórida”, como confirmou depois.

 As informações sobre a CIA foram reveladas por doutor Paulo quando o inquiri sobre sua transferência, em 1ª de setembro de 1964, para o Ministério da Guerra, lotado no II Exército – informação que obtive checando todas as suas nomeações, transferências e promoções no Diário Oficial (seu currículo oficial omite essa significativa passagem).

 Ele diz que foi transferido porque havia sido encarregado (com mais três delegados) de montar um plano de estruturação da Polícia Federal pelo general Riograndino Kruel, irmão do comandante do II Exército, Amaury Kruel (ambos também treinados nos Estados Unidos): “O Edgar Hoover (fundador do FBI) é um cara que admiro muito, e os americanos achavam muito importante montar uma polícia como essa no Brasil – o DOPS paulista já atuava como polícia federal, mas era subordinado à secretaria de segurança estadual, o que atrapalhava nossos movimentos”, explicou.

 Até hoje a Polícia Federal registra seus agradecimentos à “revolução de 1964” no site oficial da entidade: “Somente em 1964, com a mudança operada no pensamento político da Nação, a idéia da criação de um Departamento Federal de Segurança Pública, com capacidade de atuação em todo o território, prosperou e veio a tornar-se realidade”.

O capitão americano e a guerrilheira

 “Felizmente aqui no Brasil não fizemos como em outros países, matanças. Não houve isso. Houve só morte de quem quis enfrentar a polícia. Isso em qualquer lugar do mundo. Quando uma guerrilha deles lá, um aparelho, matou o nosso colega lá em Copacabana, o Moreira, o que nós tinhamos que fazer? Descobrir os caras e matar também”, ri. “Polícia é assim”, avalia o “doutor” Paulo.

 Dulce de Souza Maia, militante da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) sentiu na carne o peso dessa vingança, quando foi presa na madrugada do dia 25 de janeiro de 1969, enquanto dormia na casa da mãe.

 Dois dias antes, vários líderes da VPR tinham sido presos e os repressores já sabiam que ela havia participado de um atentado a bomba no II Exército, que matou o sentinela Mario Kozel Filho. Também havia sido erroneamente apontada como uma das autoras do atentado que em 1968 matou o capitão do Exército americano, Charles Chandler, acusado pelos guerrilheiros de dar aulas de tortura no Brasil a serviço da CIA.

 Dulce não sabe dizer se todos que a torturaram no quartel da Polícia do Exército eram militares, mas sua lembrança mais forte é a cara redonda do homem que a estuprou, depois de dar choques em sua vagina. “Eu aguentei 48 horas”, me disse, por telefone. “Depois acabei dando um endereço de um apartamento que eu conhecia porque tinho ido a uma feijoada, não era um aparelho”.

 Foi então levada para o DOPS, metida em uma viatura com uma equipe de policiais dos quais não sabe o nome: “Nem lembro das caras, estava quase morta, sei que eles me levaram para a rua Fortunato e apontei o prédio que só reconheci porque tinha parado o meu carro na frente no dia da feijoada – eu não sabia que o João Leonardo, que inclusive era de outra organização (ALN), morava ali. Lembro só que o vi quando a porta abriu”, lamenta.

 A versão do delegado Bonchristiano sobre o mesmo episódio omite detalhes significativos. “Nós estávamos atrás dos caras que mataram o Chandler, coitado, executado na porta da casa dele, no Sumaré. Em 36 horas, o Cara Feia, um tira excepcional que já morreu, sabia quem tinha feito. Aí, uma menina que nós prendemos, nos conta de uma reunião na Rua Fortunato, perto da Santa Casa da Misericórdia. Eu fui com a menina. Mandamos ela tocar a campainha. Peguei o professor que era o dono do apartamento, prendemos”, contou. “Voltamos para o DOPS, eu, Tiroteio, Cara Feia e a menina e deixei dois tiras, o Raul Careca e o Nicolino Caveira, para ver se acontecia mais alguma coisa. Telefone. ‘Doutor, o senhor tem que vir aqui, teve um problema’. ‘Muito problema?’ ‘Demais’, quando é demais é que houve morte. Quando cheguei lá, tinha sangue para todo lado. O Raul Careca, que era um ótimo atirador, tinha dado 18 tiros no Marquito (Marco Antonio Brás de Carvalho). Aí que eles me contaram o que tinha acontecido: esse que matou o Chandler tinha chegado e quando abriu a porta, falou assim: “Quem são vocês?” E os tiras: “Nós somos da família”. “Ah é?” E puxou a arma. Os tiras revidaram e ele morreu”.

 Bonchristiano jamais mencionou que a “menina” estava quebrada pela tortura. Mas corrigiu a versão que consta do depoimento de Raul Careca em um processo movido pela família de Marquito. Ali ele dizia que foram dois os tiros disparados.

Mano nera

 “O caso Chandler gerou consternação, mas, sobretudo preocupação entre o grupo de assessores policiais, pois estes poderiam tornar-se alvo também. Participaram das investigações e ajudaram a identificar as armas utilizadas, enviando o material para estudo em laboratórios de criminalística do FBI”, relata o professor Rodrigo Patto, da UFMG, que estuda a relação entre a USAID e a CIA.

 Patto, porém, não sabe dizer se Chandler era de fato da CIA como acreditavam os militantes da ALN e da VPR que decidiram matá-lo. “Ele havia estado no Vietnã, e estava oficialmente em viagem de estudos no Brasil”, diz.

 Em seguida ao assassinato de Chandler, um ex-instrutor americano de Bonchristiano, Peter Ellena, veio para o Brasil para acompanhar as investigações, o que melindrou o pessoal do DOPS. “Demos para ele a mano nera (símbolo da máfia), a mão negra ensaguentada”, diverte-se, contando que os policiais simularam um bilhete de ameaças dos guerrilheiros para assustar o “gringo”. “Ele ficou morrendo de medo”.

 O jornalista Percival de Souza relata que o DOPS produzia relatórios confidenciais diários sobre o caso para o consulado americano, e que descobriram o fio da meada que os levaria a Marquito, “menos de um mês depois do fuzilamento”, registrando em seguida a versão que Bonchristiano continua a defender: um acidente ocorrido na BR-116 no dia 8 de novembro de 1968, na altura de Vassouras (RJ), teria matado Catarina e João Antonio Abi-Eçab que estava em um fusca.

 Ao socorrer o casal, a polícia teria encontrado uma metralhadora INA calibre 35, como a que matou Chandler. O DOPS foi avisado, e Bonchristiano viajou imediatamente a Vassouras. Lá o delegado teria descoberto que o casal, militante da ALN, teria ido ao Rio de Janeiro para encontrar Marighella, e que a metralhadora era a mesma que matou Chandler. Tinha encontrado a arma do crime.

 O “teatrinho”, como os policiais chamavam as versões criadas para encobrir seus crimes, foi desmontado a partir do relato de um ex-soldado do Exército ao jornalista Caco Barcellos, em 2001, em que reconheceu Catarina “como presa, torturada e morta em um sítio em São João do Meriti (município vizinho a Vassouras)” e afirmou que os órgãos de repressão, após a execução, teriam forjado o acidente.

 Mais uma vez a “eficência” do DOPS veio da tortura. Bonchristiano, que insistiu até o fim na desmentida versão, diz que foi cumprimentado por Niles Bond pelo feito. “O Chandler era um dos nossos, frequentava nossas reuniões, o Bond sabia que eu ia resolver o caso”, gaba-se.

Esticadinha no chão

 Em 1983, os ventos democratas extinguiram o DOPS e trouxeram um novo delegado geral, Maurício Henrique Pereira Guimarães, que despachou Bonchristiano para uma obscura seção da Secretaria de Justiça, encarregada das viúvas dos soldados mortos na II Guerra. “Preferi me aposentar, hoje não acredito mais em nada. Fiz o que o presidente queria, os militares queriam, e não ganhei nem aquelas medalhinhas que eles davam para todo mundo”, desdenha, referindo-se à Medalha do Pacificador, entregue pelos militares a torturadores famosos.

 Mas o Mr. Dops não tem muito do que reclamar. Em seus primeiros oito anos de DOPS subiu da 5ª para a 1ª classe, como só acontecia aos que participavam da linha de frente da repressão. Ficou um tempo na “geladeira” quando um desafeto, o coronel Erasmo Dias, assumiu a secretaria de segurança (1974-1979). Mas conseguiu depois a promoção a delegado de classe especial e se aposentou no topo da carreira, em 1984.

 A família, porém, ainda sofre com o passado do delegado. A filha, uma artista plástica, escolheu o prédio do antigo DOPS como cenário de uma performance acadêmica. No Facebook, comenta que o pai ficou “do lado dos algozes da ditadura”, enquanto uma de suas filhas – neta de Bonchristiano –  faz campanha pela Comissão da Verdade em seu perfil.

 Dona Vera sente a distância dos netos e lembra com amargura do tempo em que o marido trabalhava no DOPS. Via-se sozinha dias a fio com três filhos pequenos: “Eu não podia falar com ele nem por telefone, ligava lá e me diziam ‘a senhora fica tranquila que ele está bem’”, conta. “E eu, apavorada com as ameaças que a gente recebia por telefone, meus filhos iam escoltados para a escola”, diz.

 Ela traz ainda outra lembrança: “Uma vez, minha filha era pequenininha, e quando o Campão, que trabalhava para o Zé Paulo, veio buscá-la para escola, ela desatou a chorar ao ver aquele homão, parecia um índio, vestido de amarelo da cabeça aos pés”, diz.

 “Era o meu motorista no DOPS, depois veio me pedir licença para trabalhar com o Fleury, ‘lá a gente ganha mais, né doutor?’ Já morreu, coitado”, interveio Bonchristiano.

 José Campos Correia Filho, o Campão, era um conhecido torturador – dos mais cruéis – segundo Percival de Souza, e membro do Esquadrão da Morte. Além de motorista do “doutor”, ele conduzia cadáveres levados do DOPS na calada da noite para desová-los nos cemitérios de periferia, segundo o próprio Bonchristiano.

 No final de novembro de 2011, o governador Geraldo Alckmin acatou o lobby da Associação de Delegados de São Paulo (cujo patrono é o falecido delegado Antonio Ribeiro de Andrade, o primeiro chefe de dr. Paulo no DOPS) e mandou para a Assembléia Legislativa um projeto de lei que equipara as carreiras de delegados de polícia, procuradores e promotores, sob o argumento de que a polícia civil é judiciária, e portanto deve ser ligada ao Poder Judiciário e não à Secretaria de Segurança Pública.

 O projeto, que o “doutor” Paulo muitas vezes defendeu em nossas entrevistas, faria sua aposentadoria pular dos atuais 11 mil reais para cerca de 20 mil reais, de acordo com os cálculos que ele mesmo fez.

 A partir do momento em que o acalentado projeto foi enviado para a Assembleia, o ex-delegado resolveu encerrar nossas conversas.

 Retornei uma última vez a seu apartamento, em janeiro deste ano, para checar alguns dados e ele deixou escapar o trecho de uma conversa que tive com um dos meus filhos, por celular. Estava disposto a me assustar.

 Na despedida, preveniu-me mais uma vez sobre o “perigo” que “nós dois” estaríamos correndo se eu levasse adiante qualquer investigação sobre a localização dos corpos desaparecidos, advertência que fez desde a primeira entrevista. Perdi a paciência: “Mas, doutor, quase todo mundo que o senhor conheceu naquela época já morreu! Nós vivemos em uma democracia, ninguém vai matar assim um jornalista ou um delegado aposentado”.

 “Isso é o que você pensa”, retrucou. “Os que hoje ocupam os cargos daqueles, antigos, também assumiram o compromisso de proteger o pacto”, afirmou. “Não tem isso de democracia, minha cara jornalista, eles fazem o que precisa ser feito. Se alguém é atropelado ou baleado no trânsito, é uma coisa que acontece, em São Paulo. Não quero ver você esticadinha no chão”.

 Quando entrei no taxi para ir embora, refletindo sobre quem afinal estaria ameaçando quem, lembrei de uma ocasião em que nossas relações eram mais amistosas e pude lhe perguntar por que “eles” tinham enterrado os corpos, em vez de atirá-los ao mar ou incendiá-los para apagar definitivamente as provas.

 De pé, na sala decorada com os estofados confortáveis, rodeados por mesinhas enfeitadas com fotos de família e bibelôs de inspiração religiosa, Bonchristiano reagiu: “Nós somos católicos, pô!”.

sábado, 27 de outubro de 2012

[...] A MORTE E A RESSURREIÇÃO NO CONTEXTO LINGUÍSTICO


:: txt :: Débora Mitrano ::

” Eu acredito que aprendemos a falar bem quando renunciamos à vida por algum tempo. É quase o preço.” –  Desconhecido
‘ Então,  falar é mortal?” – pergunta Nana
” Falar é quase uma ressurreição em relação à vida. Quando falamos é uma outra vida de quando não falamos. Então, para viver falando deve-se passar pela morte da vida sem falar.
Eu talvez não esteja sendo claro, mas há uma certa regra ascética que te impede de falar bem, até olharmos a vida com desapego.”
.
. Dessa forma ocorre o diálogo de Nana, no filme Viver a Vida, com um senhor que conhece no bar. E a partir dele pode-se fazer várias reflexões existenciais, colocando-nos como produto de análise ou utilizando outrem como método de observação. É surpreendente o modo como Godard nos convida neste diálogo a sair do cotidiano fast food (embasado em existir sem pensar), estimulando uma ótica sensível e poética a respeito do ato da comunicação.
. Em inúmeros momentos na trajetória de cada um de nós, faz-se necessário a reclusão em prol de algo maior, o desapego de sentimentos, valores e dogmas, a reciclagem completa do ser. E é justamente isso que designa essa morte voluntária precedida do renascimento, a busca por uma postura e concepção de mundo mais profunda, com o desprendimento das amarras mentais que tornam a existência circular. Assim, para que este fim seja atingindo é necessário ocorrer uma ruptura no cotidiano e no modo de viver a própria vida. Uma existência antes limitada a pequenos acontecimentos e emergências corriqueiras, voltaria-se para uma vida pensante, propriamente dita filosófica, em que o pensamento seria o dominante.
. Certamente, no trecho: ”Então, para viver falando deve-se passar pela morte da vida sem falar”, o desconhecido senhor que Nana conversa não sugere de forma simplista que não devamos mais falar nesse período, mas sim que nos dediquemos mais ao terreno dos pensamentos. Com isso sendo feito a longo prazo, o resultado natural é a mudança em nossa retórica, surgindo um novo modo de organizar e exprimir as ideias. Este processo é tremendamente fantástico, partindo do princípio ser impossível separar a evolução das ideias, das novas concepções particulares , do ato da fala,  ambas se fundem, e tornam-se fundamentais uma a outra.
. A metáfora da morte da vida e da ressurreição  suscita uma boa reflexão acerca do modo como existimos, e é um apelo por uma existência mais completa e menos superficial. Esse exercício de pensar mais do que falar, deveria ser posto mais em prática, pois além de nos permitir a exata expressão linguística do que sentimos, torna-nos não somente seres constituídos de necessidades, e sim de essência. Assim sendo, todos os momentos que nos afastamos do convívio social para se debruçar sobre questões existenciais de forma crítica, morremos (para uma ideia antiga), e logo em seguida, ressuscitamos (para uma ideia nova).

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

[copyleft] BIOCOMBUSTÍVEIS: PLANTAR O QUÊ PARA QUEM?

:: txt :: Marco Aurélio Weissheimer :: 

 PORTO ALEGRE - O Brasil está diante de uma grande oportunidade que pode tornar-se referência mundial na produção de biocombustíveis. Uma oportunidade que vem acompanhada de um desafio que exige escolhas estratégicas. O desenvolvimento de um programa nacional de bioenergia pode repetir experiências do passado, concentradoras de terra e capital, com forte impacto social e ambiental, ou pode trilhar novos caminhos, aliando a criação de uma nova matriz energética com políticas de distribuição de renda, geração de trabalho e combate à pobreza rural. Essa foi uma das principais conclusões do debate “Etanol e Biodiesel na Agricultura Familiar”, promovido pela Carta Maior, sexta-feira à noite, em Porto Alegre. A oportunidade e os desafios identificados pelos debatedores surgem em um cenário mundial marcado pelo fim da era de combustíveis fósseis, com pesadas implicações sociais, econômicas, políticas e ambientais.

 O debate realizado no Hotel Embaixador expressou, sob diferentes inflexões, a seguinte pergunta: a produção de fontes energéticas como biodiesel e etanol deve ter estar subordinada a um projeto de desenvolvimento mais amplo, gerador de trabalho e renda, e ambientalmente sustentável, ou deve ficar subordinada à lógica do grande capital global, que já olha para o Brasil como um novo Eldorado? O ex-ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, o consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), Marcelo Guimarães, e o engenheiro de produção, Algacir Goron, defenderam a primeira alternativa. “Reproduzir, no início do século XXI, modelos de séculos passados que, historicamente, concentraram renda, produziram desigualdades sociais e destruição ambiental seria uma estupidez e um retrocesso”, resumiu Rossetto.

 A ameaça da “estrangeirização” do território nacional

 A articulação do programa de bioenergia com um projeto de desenvolvimento endógeno enfrenta, entre outras coisas, o apetite voraz de grandes investidores internacionais que começam a exercer uma grande pressão sobre terras brasileiras. Em outras palavras, começam a comprar, direta ou indiretamente, uma grande quantidade de terras brasileiras, abrindo a possibilidade de uma significativa “estrangeirização” do território nacional. Esse processo concentra-se, fundamentalmente, em torno do processo de produção do etanol. Ao abrir o debate, o mediador Bernardo Kucinski apresentou alguns números que dimensionam o tamanho desse mercado. O Brasil possui hoje mais de 330 destilarias de álcool em funcionamento, com outras 19 projetadas para entrar em funcionamento nos próximos dois anos e mais 65 em fase de projeto e desenvolvimento.

 O Brasil é hoje o segundo maior produtor mundial de etanol (cerca de 17,5 bilhões de litros/ano), ficando atrás apenas dos Estados Unidos (cerca de 20 bilhões de litros/ano). Em 2005, o Brasil foi responsável por cerca de 55% do etanol comercializado internacionalmente. Com as novas usinas que devem entrar funcionamento nos próximos anos, a produção nacional de etanol deve aumentar em pelo menos 7 bilhões de litros até 2010. Essas usinas são proprietárias de cerca de 70% da área de cana plantada no país. Os 30% restantes estão nas mãos de médios e pequenos proprietários. Como a demanda mundial de biocombustíveis deve crescer exponencialmente nos próximos ano, em virtude da forte demanda de EUA, União Européia, China, Japão e Índia, entre outros países, o Brasil tende a aumentar significativamente a área de cana plantada.

 A exigência da regulação: por um Plano Diretor rural
 Hoje, essa área é de aproximadamente 6,3 milhões de hectares, sendo cerca de 2,6 milhões para etanol. A estimativa para o período entre 2010 e 2013 é de um aumento de 63% dessa área, chegando a aproximadamente 10,3 milhões de hectares. Uma parte considerável desse aumento está associada ao fato de que grandes investidores e fundos de investimento estrangeiros estão comprando terras e financiando a construção de usinas no Brasil. A Ethanol Pacific, de Bill Gates, por exemplo, já anunciou a intenção de investir US$ 200 milhões para viabilizar a criação de um canal permanente de exportação de álcool para os EUA. Como evitar que esse crescente internacional resulte em um processo que aumente a concentração fundiária e expulse milhares de agricultores familiares de suas terras? Para Miguel Rossetto, o programa brasileiro de biocombustíveis exige opções regulatórias claras para impedir que isso ocorra. Sem regulação, adverte, o modelo será concentrador, repetindo erros do passado.

 “Vivemos um momento que abre enormes possibilidades para a produção de combustíveis renováveis, através de um programa que alie a questão energética ao combate à pobreza rural. Mas sem um marco regulatório, teremos concentração de terra e renda e não geração e distribuição de renda”, resume o ex-Ministro do Desenvolvimento Agrário. Rossetto enfatiza a importância da idéia de limite que já foi incorporada no contexto do desenvolvimento urbano, mas que ainda enfrenta resistências no meio rural. E fala da necessidade de uma espécie de Plano Diretor para o campo brasileiro. “A sociedade urbana já aceitou a idéia de limite e, através do Plano Diretor, estabelece regras para delimitar a altura de prédios, preservar áreas verdes, etc. Precisamos avançar na direção da construção de um Plano Diretor para as áreas rurais para superar a lógica de vale-tudo e suas conseqüências negativas”.

 Uma revolução industrial tropical
 Na mesma direção de Rossetto, Marcelo Guimarães defende que o grande desafio de um programa nacional de biocombustíveis é criar empregos na área rural. “Essa é uma questão crucial para o Brasil. O futuro é agora ou nunca mais. Se o gigante adormecido acordar amarrado, fracassaremos”. Para Guimarães, vivemos um período análogo ao da Revolução Industrial, quando o aproveitamento do carvão mineral desencadeou um profundo processo de transformações políticas, econômicas e sociais. Ele ilustra esse paralelo histórico e suas implicações: 90% das jazidas de carvão estão situadas acima do Trópico de Câncer e, não por aças, 90% dos países industrializados estão acima do Trópico de Câncer. Cerca de 90% das reservas de petróleo também estão acima desse trópico. A energia fóssil acima do Trópico de Câncer gerou a cidade industrial. Agora, são os países tropicais, abaixo do Trópico de Câncer que têm as melhores condições energéticas, sendo o Brasil, o melhor deles pelas características de seu território”.

 Para Guimarães, a produção de biocombustíveis como etanol e biodiesel só faz sentido se melhorar a qualidade de vida do povo brasileiro. Ele observa que a megalópole é o maior câncer que o país tem hoje. Grandes e caóticos aglomerados urbanos que têm, em suas periferias pobres, milhares de pessoas que foram expulsas do campo por um modelo produtivo concentrador. O debate sobre etanol e biodiesel, reforça Algacir Goron, deve ser orientado por um sentido de desenvolvimento, que fortaleça a agricultura familiar e o desenvolvimento regional, e não pela lógica de querer, acima de tudo, transformar o Brasil em um grande exportador de combustíveis. Os três debatedores concordaram também que não existe solução para os problemas urbanos do Brasil sem melhorar a qualidade de vida no campo. Assim, a questão crucial não seria debater se o etanol é melhor que o biodiesel, se deve-se plantar isto ou aquilo, mas sim “plantar para que e para quem”?. Essas questões, por sua vez, estariam subordinadas a uma pergunta mais geral: qual padrão de desenvolvimento e de consumo a sociedade brasileira deseja?

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

[...] RÉQUIEM PARA UM JORNAL HUMORÍSTICO

:: txt :: Millôr Fernandes ::

 Assim, depois de quatro anos de muitas e gargalhantes pelejas, algumas das quais foram acompanhadas alacremente pelo leitor, e outras das quais o leitor nem pode tomar conhecimento, O PASQUIM chega ao número 200. Chega, não passa. Este é o último número do nosso jocoso semanário. Não é preciso que nossos amigos se embriaguem de alegria. Nem que nossos inimigos chorem. As coisas, como as pessoas, nascem, crescem e morrem, não é mesmo, Conselheiro? Só que O PASQUIM nasceu às gargalhadas. Como todo o mundo viu, cresceu, diminuiu e cresceu de novo, sempre castigando os mores, e hoje morre, rindo às bandeiras despregadas. Pois morre vendendo saúde (100. 000 exemplares) .

 Morre atropelado. Uma força de alguns milhões de toneladas, uma teia de milhares de restrições e impedimenta, uma incalculável massa de obrigações e imposições, tornaram irrespirável a nossa já modesta ração de ar.

 Dos seus quatro anos de hilariante vida, este zombeteiro hebdomadário pode contabilizar a glória de ter modificado fundamentalmente a linguagem dos outros jornais e ter influído muito na expressão falada da juventude e no estilo da comunicação publicitária. Durante quatro anos, este risonho jornal cuja maioria de sorridentes redatores não é ligada a nenhum grupo político, econômico, religioso, nacional ou estrangeiro, que tem como único objetivo o exercício de uma crítica geral e democrática a tudo e a todos (os poderosos e estabelecidos sendo, naturalmente, os mais criticados, pois, não há graça nenhuma em criticar os caídos), foi combatido pela maioria dos grandes órgãos de imprensa brasileira e por todos os detentores de algum poder, inconformados com um veículo que não tinha preço de venda a não ser o da banca e era dirigido por intelectuais inatacáveis porque sem fichas pregressas que os situassem em qualquer esquema de ilegalidade ou qualquer espécie de criminalidade, mesmo fiscal.

 Chegando a circular com um máximo de 64 e um mínimo de 16 páginas, o ridente PASQUIM conseguiu sobreviver a tudo, até mesmo à prisão de todos seus redatores, provada inútil pelas próprias autoridades num processo que foi a consagração deste grupo de profissionais, pois demonstrou que eles tinham como único e total objetivo de vida o exercício de sua apaixonante profissão.

 A coação física não impossibilitou a saída do jornal. Durante dois meses, ele circulou sem a colaboração de qualquer dos seus redatores habituais. Sobreviveu graças à solidariedade de inúmeros colegas. Saiu fraco e sobreviveu mal. Mas sobreviveu com a barriga doendo de tanto rir.

 Agora, porém, temos que nos render e afirmamos, humildemente, a nossa derrota definita, diante da única coação irresistível, a coação intelectual, hoje absoluta. Uma censura inconstitucional - a Constituição vigente é explícita quanto à liberdade plena de jornais e revistas circularem sem qualquer censura, os responsáveis respondendo, naturalmente, diante da lei, pelos desmandos que cometerem - já vinha sendo exercida de maneira sufocante. Jornais pobres, como este, resistiam debilmente, gastando 20 horas para refazer um trabalho anteriormente feito em 10 e tendo o dobro e, às vezes, o triplo de gastos para a confecção do material de suas folhas. Coincidindo com o número 200, atingimos o limite das nossas possibilidades, fronteira natural de nossas ilimitadas impossibilidades. As poucas normas que ainda havia foram substituídas por um desvairo total das canetas pilotis, em que não há nem mesmo aquilo que se poderia exigir como último direito do cidadão - o respeito ao seu trabalho. Nosso trabalho, mesmo os nossos piores adversários reconhecem que o fazemos com conhecimento e seriedade. Trabalho de criação, único, pois artigos e desenhos humorísticos não podem ser substituídos de um momento para o outro como se fossem simples reproduções de discursos ou resenhas de acontecimentos sociais.

 Mas o importante é que esta despedida não se alongue nem se transforme numa inútil exposição de motivos. E que, sobretudo, não seja triste. Só fechamos porque nos falta a competência da maleabilidade. Fechamos porque fechamos. O mundo não vai acabar. O Brasil vai continuar. Acontece que há momentos em que certos países não produzem determinados produtos que noutras épocas já produziram em abundância e que voltarão a produzir um dia.

 Agora, parece, não é o momento propício para o plantio de facécias. Esperamos apenas que, daqui a cinqüenta anos, quando os especialistas estiverem saboreando os magníficos produtos satíricos de então, alguém se lembre de nos fazer justiça: "É, 73 não foi um bom ano para humorismo!"

Junho 1973

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

[...] QUEIMEM BANCOS

 Frases pixadas durante a insurreição que tomou as ruas da França em março (e meses seguintes) de 2006, ocasião em que milhares de jovens protestavam contra o Estado e sua truculência física e legislativa, ações motivadas pela criação da lei que instituiu o CPE - Contrato de Primeiro Emprego -, que fodia ainda mais a vida dos jovens, e pelo despejo violento dos estudantes que então ocupavam a Universidade de Sorbonne. Milhares de carros foram queimados e instituições destruídas.


Polícia em toda parte = justiça em parte alguma

Não ao Estado, à midia e ao patronato

Para pagamento ruim, trabalho ruim

Chega de ser razoável

Construam escolas e as prisões serão desnecessárias

Viva o convívio mútuo e a solidariedade
Morte ao produtivismo e ao consumismo

Destituam todos os políticos

Destruição é rejuvenescimento

Queimem bancos

Lucidez é uma forma de resistência

A melhor forma de votar é arrancar pedras da calçada e lançá-las nas cabeças dos políticos

Não implore pelo direito de viver, tome-o

O ego é uma prisão

As eleições mudam as moscas, a alternativa real está nas ruas

Somos livres para abolir vosso mundo

Mídia por toda parte = informação em parte alguma

Não tenha medo de nada

Somos incansáveis

Quem semeia miséria colhe fúria

Se ninguém obedece, ninguém comanda

terça-feira, 23 de outubro de 2012

[do além] GOD SAVE THE PIG


:: txt :: Vicious ::

 Nancy notou que havia algo de muito errado quando viu que eu tentava me injetar sem tirar os dedos da tela. Furiosa, deu um tapa em minhas mãos e disse com desespero na voz que aquilo era o fim e que havia limites, mesmo para um punk. Era preciso respeitar certos rituais e práticas. Os amigos também estavam se queixando. Todos reclamavam do meu isolamento e incomunicabilidade. 

 Mas o alarme soou mesmo durante um show. Na hora em que todos esperavam que eu vomitasse ou desmaiasse, eu estava concentrado no meu celular, com o olhar fixo e os dedos em constantes movimentos na tela. Nem percebi o clima de reprovação à minha volta. Depois do espetáculo, a banda toda investiu contra mim. Aleguei que estava vencendo uma fase difícil e que, naquele momento delicado, não era possível interromper. Ninguém se comoveu. Até porque nem ficaria bem para uns marmanjos vestindo camisetas rasgadas com estampas de suástica, calçando coturnos e usando cabelo moicano mostrarem algum sentimento solidário. Foi então que decidi, pela primeira vez, deletar o Angry Birds do meu celular.

 Se você nunca ouviu falar de Angry Birds, nem se familiarize com o tema. Pode ser perigoso. Mas para você entender melhor meu drama, devo contar do que se trata. Angry Birds é um joguinho de ação que roda em celulares touch screen e em computadores. Virou uma febre mundial. Consiste em colocar pássaros furiosos numa funda e arremessá-los contra estruturas que abrigam porcos verdes a fim de destruir os mesmos. Parece uma coisa idiota, eu sei. Mas dá um enorme barato quando você mata aqueles suínos e detona aquelas estruturas.

 Tenho reconhecidamente uma psique compulsiva. Mas a dependência de Angry Birds não é um problema só meu. No mundo inteiro, mais de 250 milhões de pessoas já baixaram o jogo nos seus aparelhos. Por dia, esse grupo dedica 200 milhões de minutos a eliminar porcos. Se somarmos o tempo gasto por todos os jogadores desde o lançamento, isso totalizaria 107 mil anos. Se esse tempo fosse empregado em pesquisas médicas, teríamos a cura do câncer em menos de uma semana. É por isso que eu não acredito em crowdsourcing.

 E você sabe como é a estratégia dos produtores? A primeira versão simplificada, com poucas fases, eles oferecem de graça. A completa, aquela que você pode se aprofundar mais e mais, só pagando. 

 A primeira vez que tentei largar o Angry Birds subestimei as dificuldades. Eu simplesmente deletei o app e guardei o celular no bolso. Mas minha cabeça não parava de jogar. Eu via mentalmente os pássaros sendo estilingados, as estruturas quebrando e os porcos verdes explodindo. Me pegava especulando estratégias para concluir etapas difíceis. "Jogo o pássaro vermelho na base, depois o amarelinho no meio e o branco para arrematar." Meus dedos se movimentavam sozinhos pela tela do aparelho simulando jogadas, como um ex-fumante que coloca o cigarro apagado na boca. Diante dessa crise de abstinência, para sair desse estado depressivo e lamentável, não vi alternativa a não ser instalar o jogo novamente.

 Hoje decidi que não há como lutar contra esse vício. Sigo jogando umas oito horas por dia. Não me incomoda, de nenhum jeito, ter um hábito que não controlo. O que me chateia é atentar contra o lema punk de viver intensamente e morrer cedo.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

[agência pirata] O ROQUEIRO E O MAR

:: txt :: Guga Azevedo ::

 A conversa durou a tarde inteira. Lula tinha acabado de sair do hospital e estava retomando as atividades normais. Passou por algumas complicações cardíacas durante uma apresentação e foi internado. “O meu peito apertou no meio do show! Os músicos começaram a tirar sarro. Eu desci do palco e fui até o bar. Tomei uma dose e não melhorou…. fiquei sentado em uma calçada do Recife Antigo até ser ajudado por uma menina”. Foi mais ou menos isso que ele disse. Coloquei as aspas por educação, já que o único registro daquela conversa ficou em minha memória.

 Essa lembrança voltou com força depois da notícia de sua morte. Lula Côrtes se foi. O último suspiro do real período psicodélico que o Brasil viveu.

 Morei em Recife entre 1997 e 2002. Dos 15 aos 21 anos. Vivi muita coisa ali… e sempre esbarrava com essa figura magra, bronzeada e com os cabelos brancos queimados pelo sol. Podia ser em algum show gratuito no Recife Antigo ou na praça de alimentação do Shopping Guararapes. Sabia, e não sabia, de sua importância para a música brasileira. Fui conhecer a história depois que mudei para Curitiba e entrei no mundo do vinil. Acompanhava os leilões virtuais do disco “Paêbirú” e me lamentava por não ter parado para conversar com ele. Sentar e tomar uma cerveja.

 O gringos sempre deram mais valor a este disco gravado por Côrtes e Zé Ramalho em 1975. Clássico absoluto da psicodelia brasileira e misturas de ritmos. Quando eu lia as resenhas e comentários, só aumentava a angústia.

 Lá por 2003 (ou 2004?) fui passar as férias em Recife e aproveitei para fazer algumas entrevistas. Lula Côrtes na cabeça… Marquei uma conversa inicial antes de partir para a entrevista. Ele queria mais informações e eu precisava sentir um pouco do terreno que iria encarar. O papo começou em uma creche que ele mantinha no bairro de Candeias.

 Finalmente, consegui sentar e tomar uma cerveja com ele.

 O pensamento bagunçado e a mistura de emoções eram explícitas. Ele falava sobre a felicidade em retomar a rotina com as crianças enquanto mostrava fortes desenhos produzidos no período hospitalar. Era um artista plástico de mão cheia. Traços marcantes que delineavam os companheiros de quarto. Pacientes em estado terminal, médicos, familiares e camas vazias.

 Continuamos em um boteco ali próximo. Lula tirou um maço de Hollywood e pediu uma dose de uísque. Cowboy. Enquanto esperava a bebida, reclamava dos incômodos da recuperação física e arrancava os filtros de todos os cigarros. Fumou todos, com a mesma vontade de aproveitar a vida e contar sua história. “Ficam fazendo festa para o Chico Science até hoje. Gosto de seus discos e não tenho nada contra… mas eu fui o primeiro a misturar sons estrangeiros com ritmos nordestinos. Ninguém lembra disso… só falam que eu era um loucão que aparecia nas festas distribuindo baldes de ácidos. Porra! Se eu tivesse um balde de ácido naquela época, estaria muito rico hoje… ou morto”, e dava risadas.

 A crítica é verdadeira. Mas o caminho seguido por Chico Science foi um pouco diferente. Outros tempos, outro público. A antena fincada no mangue servia, também, para reverberar os sons de Côrtes. Críticos deslumbrados esqueciam disso.

 Resolvemos deixar a entrevista para o dia seguinte. Liguei para confirmar o horário e ele me diz, “velho! Foi mal. Esqueci da entrevista. Tô em um barco indo para Fernando de Noronha. Deixa para quando eu voltar. Em quinze dias a gente senta e conversa”.

 Não rolou.

 Fiquei puto na época. Mas carrego essa conversa até hoje…

 Ele mudou. Se acalmou e concentrou os esforços na luta contra a doença. As últimas notícias que tive era sobre seu trabalho como assessor cultural da Prefeitura de Jaboatão dos Guararapes e na possível reedição de “Paêbirú” com ajuda internacional. Lula continuou no meio cultural, nos palcos, quadros, livros e crianças. Um artista completo que merece ser lembrado por toda sua obra.

 Em meus devaneios, guardo a imagem dele livre, no meio do mar, cabelos ao vento e o celular na mão.

 Um brinde, Lula. Boa viagem.

sábado, 20 de outubro de 2012

[agência pirata] JORNALISTAS BUNDÕES

:: txt :: Wladymir Ungaretti ::

 Gostaria de dar o nome de alguns desses bundões. Os que com a bunda pregada diante dos computadores, das modernas redações, são os donos do mundo.

 
 Andréia vive pelos bares do Mercado Público de Porto Alegre. Quer casar com um coroa, branco. Promete fidelidade e dedicação. Sempre usou camisinha. Tem 38 anos. Disse que já foi mais bonita, mas quer voltar a se cuidar.

 Estava tentando levantar uma grana para visitar o filho em Florianópolis. É super bem humorada. Suas observações sobre os frequentadores dos bares é de quem sabe tudo da vida. De uma vida sofrida.

 Ele é Paulo Monteiro. Um técnico em enfermagem. Está sumido do emprego. Deveria estar trabalhando em um hospital de Porto Alegre. Um dos filhos, o que está com o cartão bancário dele, treina no Grêmio. O outro estuda para prestar vestibular na medicina. Ele admite que têm problemas de alcoolismo. Quando fala que está morando na rua começa a chorar. Estava se preparando para dormir na rua Voluntários da Pátria. Não tinha feito uma refeição durante todo o dia. Não disse muito mais do que isso. É super educado.

 Anderson Alexandre procurava o que comer no lixo da Avenida Independência (PA). O iogurte, de todos os potinhos que encontrou, estava estragado. No máximo conseguiu uma ou outra fruta. Recolheu algum material de plástico para vender. É mais um morador de rua que vive do lixo.

 Os jornalistas são uns bundões. Pontodevista está sob censura. Gostaria de dar o nome de alguns desses bundões. Os que com a bunda pregada diante dos computadores, das modernas redações, são os donos do mundo. O fotojornalismo é das fotos/divulgação, do material já editado pelas agências ou das pautas da perfumaria. Não posso fazer nada. É a minha opinião. O meu final de segunda-feira foi marcado por estas histórias de vida. Com 78 quilos (quatro a mais que Tarso de Castro) de músculos e fúria, sem o seu talento, transfiro esta porrada a todos vocês. Jornalistas bundões um dia serão obrigados a prestar conta das histórias não contadas. Por nos empanturrarem de tanto lixo perfumado. Todos com diploma. O jornal “Última Hora” de Porto Alegre, sob a orientação de Samuel Wainer, começou a circular em fevereiro de 1960. Ninguém tinha diploma.


 Não compre nenhum jornal, pelo menos hoje. Existem melhores textos de ficção. Lixo ficcional não serve para nada. Intoxica. Os marginais, os que estão à margem, vão comer os bundões. Qualquer dias desses.

 Palavras como estiletes. Quero perfurar a alma das pessoas.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

[#oioioifinal] EU QUERO VER TU ME CHAMAR DE AMENDOIM


[nem te conto] VIDA TRANSITÓRIA

:: txt :: Seu Cossio ::

 Fellini. Tive que aprender a gostar depois que um colega descarregou praticamente toda a filmografia do cineasta no computador. Não é que eu não gostasse antes, mas para um brasileiro normal, gostar de Fellini é meio que coisa de bundão. Na boa. Quem é que entra numa locadora e pega um filme do Fellini? Bundão metido a intelectual. Tudo bem, existem cinéfilos com uma genuína paixão por cinema, mas tem muito mais gente que faz finta. Porém, aqui na Itália ter assistido a todos os filmes do Fellini é coisa normal. Por isso tive que me atualizar.

 Do que vi até agora, existem algumas verdadeiras obras primas e outros que são um pouco superestimados. “La dolce vita”, por exemplo, é um saco. Três horas em frente a uma tela assistindo a uma sucessão de festas dos italianos dos anos 50 não me diz muita coisa. Até imagino que na época pode ter sido uma sensação, mostrar que a burguesia tem a cabeça vazia e só pensa em gastar dinheiro. Mas o filme é um saco. O próprio Fellini consegue mostrar a mesma situação da burguesia em outro filme, “Giulieta degli spiriti”, de forma muito mais interessante.

 Mas, olha só, já estou virando um bundão entendedor de filmes. O que eu queria dizer com tudo isso é outra coisa, que tem a ver com um dos filmes do Fellini, “La strada”. Belo filme. Triste uma barbaridade.

 O assunto desse texto é o desapego a coisas materiais. Há alguns dias me dei conta de que as únicas coisas que tenho são minhas roupas, minha guitarra, meus livros e meus discos. Mas os livros e discos estão longe, então, de concreto, só tenho as roupas e a guitarra. O resto todo é transitório. O que me deixa muito feliz. 
Nos últimos anos tenho me mudado tanto de casa que qualquer lugar é bom, desde o Apartamento 2 até o sótão de Bologna, passando pela pousada da Josi em Jaraguá, a casa dos irmãos em Joinville, mais a casa dos repórteres, depois o primeiro apartamento de casado, de volta pra Porto Alegre.... enfim, uma vida transitória, que me ajudou muito a descobrir o real valor das coisas.

 O filme em questão fala mais ou menos sobre isso, já que todos os personagens são artistas de rua. Mas o conceito fica realmente claro na fala de uma freira. “Nós mudamos de convento a cada dois anos porque assim conseguimos nos desapegar das coisas materiais, sabemos que tudo é transitório”. Com isso, chego à conclusão de que eu sou praticamente uma freira, mas uma freira que bebe, fuma, transa e ouve Rock`n`Roll. Ou seja, uma pessoa em contato direto com as divindades, mas que sabe aproveitar a vida.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

[agência pirata] ESTE É O ROBERT CRUMB QUE EU TE FALEI, MEU FILHO!

:: txt :: Cristóvão Feil ::

 O genial artista do desenho, seja no p&b, seja no colorido exuberante, sempre surpreende e emociona.
 Uma pequena mostra, uma pálida amostra, como diria um advogado data-vênia, do grande artista que é  Robert Crumb, nascido em 1943, e que hoje vive no Sul da França, que ele não é bobo. Quem não se lembra do Fritz, The Cat, ou do Mr. Natural, e das mulheres coxudas e bundudas de Crumb?
Aliás, Crumb sempre viu as mulheres vigorosas e fortes, e os homens frágeis e decrépitos. Uma coisa que eu concordo com Crumb. Está certo!
 Na ilustração superior, como podem notar, RC desenha três cenários possíveis para a nossa desumanidade. Vale a pena ampliar a ilustração para ver os detalhes magníficos da arte do cara.
 
 Ano passado ainda, Crumb desenhou em quadrinhos a vida de F. Kafka. Acho que deve ter sido o seu último trabalho, mas não o derradeiro. Longa vida, pois, ao camarada Crumb!

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

[...] MAIRA PARULA

   :: psy ::  ::                              

Era um corredor em forma de I. 
 O vizinho da direita diria é um corredor qualquer, 
 como todos os outros nove. 
 Apenas um caminho para entrar e sair dali. 
 O da esquerda, por que pensar no corredor? 
 Atravessa e chega no mundo, 
 um elevador de espelhos 
 sem janelas 
 com portas de engate mecânico 
 para o poço. 
 Para I não era um corredor qualquer. 
 Conhecia os outros nove. 
 Os quatro em cima dele e os cinco para chegar até ele. 
 O primeiro, escuro, um peso, 
 de porta ou outra entreaberta, 
 a falsa pretensão de ser quase rua. 
 O segundo, comidas sendo fritas em alma até o quinto. 
 I queria ser o quinto. 
 Pelo sétimo a luz começava a entrar 
 e o cheiro de lixo não era tão forte. 
 Tão barato. 
O décimo era uma fotografia. 
 Um martíni de mármore. 
 Uma noite de sábado. 
 Uma coincidência. 
 Oito apartamentos por andar. 
 Oitenta números e telefones exaustos 
 tocando de frente e de fundos. 
 Maçanetas respirando se tivessem tempo. 
 Mas I só ouvia as vozes dos seus oito. 
 Os passos pegajosos indo e voltando do trabalho. 
 O fosso. 
 I ficava quieto, ouvindo. 
 Uma língua que teve de aprender. 
 Três lâmpadas acesas, cinco queimadas. 
 Ele não passava das portas. 
 Não conhecia o peitoril das janelas. 
 O que as pessoas viam por elas. 
 Ou se só viam pelos jornais até conseguir falar. 
 A vida seria mais simples fosse ele um L. 
 Mais divertida fosse um S. 
 O ar circulando livre. 
 Sem escadas. 
 Nada mal. 
 Talvez as portas lhe sorrissem. 
 Balançassem as chaves e ele veria 
 uma nesga de cortina lá dentro. 
 Um papel de bala. 
 Camas desfeitas. 
 Um globo terrestre. 
 Um par de luvas de camurça. 
 Um homem de paletó de costas para I. 
 A mulher caída no chão. 
 Uma garota que costumava cantar. 
 O homem desligando a vitrola 
e apagando o cigarro no cinzeiro de latão. 
 Mas ninguém gosta de bisbilhoteiros 
 e o homem bateu a porta. 
 I ficou contando capachos. 
 Rachaduras no reboco. 
 O pó virando néon. 
 Areia molhada. 
 Um ligeiro tremor percorreu 
 suas paredes até a garagem. 
 Ninguém iria tão longe.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

[detenham os hunos!] MONÓLOGO

 -Talvez tu não precise disso, ou talvez precise mais do que imagina, mas a questão é: isso irá lhe dar uma plena satisfação, ou não passará de um desejo, um mero impulso? Sabe, querida, eu tentei ser sensato, mas tuas idéias estavam me apavorando, não conseguia dormir direito nem trabalhar, tomava porre de
whiskey toda noite pra esquecer das tuas loucuras.
 Eu sei, fomos felizes e tals, mas bem que a gente poderia mudar o nosso banco daquela praça, mendigos dormem ali, sabe, mijam e cagam também. Melhor, poderíamos mudar de praça, ou de país, ou simplesmente ficar em casa, tu me conhece, não gosto de lugares públicos, as pessoas me dão ânsia de vômito, principalmente os membros da tua família. Não me force a isto, a gente pode tentar mil coisas ainda, ouviu? Ana...? Ana...? Ana!
 Ele continuava apertando firmemente o pescoço dela, com ambas as mãos, conforme ela havia pedido; e então ele cai na gargalhada, perante a língua roxa e os olhos esbugalhados de sua esposa. Antes de pôr o corpo no porta-malas do carro, ele nota uma correspondência na caixa:
- Mas que diabos, vão cortar a TV a cabo de novo!
  O sol estava nascendo, com vários feixes de luz se espalhando para todos os lados, e aos poucos ilumina toda a rua. No vidro traseiro do carro que já ia longe, percebe-se algo escrito:
"LAVE-ME".
 
 

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

[jota péguiz] LELECO


[...] MELANCOLIA

 :: psy :: Charles Bukowski ::

a história da melancolia
inclui todos nós.
a mim, eu me contorço em sujos lençóis
enquanto observo as paredes azuis
e o nada.
acostumei-me tanto à melancolia
que
a cumprimento
como uma velha
amiga.
Ficarei de luto por 15 minutos

por ter perdido aquela ruiva,
digo isso aos deuses.
eu faço isso e me sinto completamente mal.
completamente triste,
então me levanto
LIMPO
embora nada tenha sido
resolvido.
é isso que consigo por chutar
a bunda da religião.
eu deveria ter chutado a bunda
da ruiva
onde seus miolos,  seu pão
e sua manteiga estão
no…
Mas, não, eu tenho me sentido triste
por tudo isso:
ter perdido a ruiva foi, somente, outra
porrada que foi dada numa vida inteira
fracassada…
escuto os tambores no radio agora
e forço um sorriso.
além
da melancolia
há algo de errado comigo.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

[agência pirata] PIXINGUINHA – O SANTO QUE VIROU ORIXÁ


 :: txt :: Carlos Henrique Machado Freitas ::

 “No ponto de Ogum, o compromisso rítmico-tonal de que falo foi interessantissimamente por uma neuma-refrão “aê”, que se canta num salto, indo do segundo pro quarto grau e fixando o acorde de sétima dominante. O ponto de Ogum – é realmente um documento precioso, uma obra-prima como originalidade, caráter afro-brasileiro e ainda com o protótipo da música de magia.” (Mário de Andrade – Música de Feitiçaria no Brasil).

 Nunca foi tão importante saber ler a história da música brasileira, seja pelos seus principais personagens da vida artística, seja pelo ponto de identificação da arte popular. Arte que, segundo Mário de Andrade, é naturalmente tropical. No entanto, dá um aperto no coração quando num dia tão especial quanto o 23 de abril em que vemos muitas comemorações a São Jorge (Ogum) e que também é o dia em que se comemora o nascimento de Pixinguinha e por isso O Dia Nacional do Choro, nossas principais instituições oficiais de cultura (que vivem tempos bicudos em um debate de araque) ignoram solenemente a concepção de nossa musicalidade posta em prática, uma música que procede da leitura do próprio povo.

 Esta visão mágica que o Estado não consegue ter, é o que Pixinguinha sempre teve, com sua flauta, seu sax, seu pioneirismo como primeiro arranjador brasileiro e com uma composição farta e rica que puxa o fio mais sublime dos sentimentos do povo brasileiro para tecer uma versão artística do que é praticado em seu princípio por esta civilização tropical.

 Dia desses vi o grande mestre Wilson das Neves dizer que “os grandes sambistas, quando morrem, viram orixás”. Então, Pixinguinha, classificado por muitos que o conheceram como São Pixinguinha, com certeza também virou um orixá. Na verdade motivos pra isso não lhe faltaram. Ogan, Pixinguinha foi o informante que, capaz de expressar realmente o objetivo das religiões de matrizes africanas, encheu de informação Mário de Andrade para que ele tivesse um rico material em uma conferência que mais tarde se transformaria em um dos principais livros sobre a Música Brasileira, “Música de Feitiçaria no Brasil”.

 Portanto, a homenagem que Mário de Andrade faz a Pixinguinha no livro “Macunaíma” com o personagem “Filho de Ogum Bexiguento” tem raízes bem mais profundas de uma colheita farta de informações que a amizade entre os dois proporcionou.

 Não tenho dúvidas de que o grande período de modernização de nossa música se deu nos primeiros sessenta anos do século XX. Jamais o Brasil viveu diante de tantas concepções que serviram de suprimento em quantidade e qualidade às gerações que viriam. E, dentre tantos grandes músicos, alguns deuses como Villa Lobos, Pixinguinha e Nazareth trouxeram em suas obras verdadeiras conferências aonde se encontram os pilares centrais da música moderna brasileira.

 Há um outro aspecto singular em nossa música que reflete, não a religião, mas a religiosidade do povo brasileiro. E esse tema ecumênico desinteressado frequenta e decora a grande música brasileira até os dias de hoje. Ou seja, é a própria gênese de uma civilização que se manifesta diante das divindades de uma forma espontaneamente livre, a seu modo, tratando de se comunicar com o universo divino a partir dos princípios de nossa própria cultura mestiça.

 O Choro é uma carta aberta que coloca o Brasil em um cenário amplo que se movimenta sem conflitos estéticos ou ideológicos. E Pixinguinha, com seu talento, glorificou toda a informação colhida, nota por nota, no seio da sociedade a partir do tempo de nossa música.

 Por mais que achemos inaceitável que o Ministério da Cultura do Brasil se faça de autista diante desta data para produzir pensamentos híbridos, artificiais e economicistas sobre cultura, rasgando símbolos fundamentais de nossa memória, a nossa responsabilidade só aumenta. Por isso, passada a invasão da indústria fonográfica estrangeira, esse corpo estranho que não se integrou por falta de sensibilidade com a obra brasileira, está sendo expelido e todo o tecido social de nossa música vai se recompondo numa reintegração fulminante dadas as novas tecnologias de informação, num misto do divino, do profano e do virtual, uma santa comunhão.

 E essa alma brasileira, como classificou Villa Lobos, o Choro, volta a ganhar clareza, liberdade e, consequentemente vai vestindo a roupa de gala e se tornando cada vez mais popular, mantendo contatos cada vez mais amplos com a juventude pela identificação com a obra de santos brasileiros que, como Pixinguinha, viraram Orixás.

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