#CADÊ MEU CHINELO?

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

[agência pirata] MELHORES DO ANO II

::txt::Daniel Piza::

De vez em quando leio que essa história de dizer que o cancioneiro brasileiro moderno (ou MPB, rótulo às vezes usado de forma muito restritiva, "esquecendo" glórias como Pixinguinha ou Nelson Cavaquinho) é dos melhores do mundo, ao lado do americano, do inglês e do cubano, seria um exagero nacionalista ou algo parecido - já que há também a "chanson" dos franceses, a "canzone" dos italianos, o tango de Gardel a Piazzolla, o fado, etc. Mas o repertório criado na terra de Tom Jobim continua sendo admirado pelos músicos mais talentosos do planeta. E gravado por cantoras como Stacey Kent, que em seu novo CD, Dreamer in Concert, além de quatro clássicos americanos e dois franceses, interpreta Corcovado, Águas de Março e Samba Saravá e até arrisca o português em O Comboio. Ou por Amy Winehouse, cujo disco póstumo, Lioness: Hidden Treasures, faz versão cheia de "scats" de Garota de Ipanema. Sim, ela fará mais falta como compositora, naquele seu motown apocalíptico.

São duas áreas em que a contribuição brasileira ao mundo é inegável, o futebol e a canção, embora com todos os problemas o futebol ainda produza um Neymar. Não que não haja diversos talentos jovens na música brasileira, mas os tempos já foram melhores. Não à toa ainda se fala demais de veteranos como Chico e Caetano, que deram inteligência às letras honrando a tradição da melodia. O novo CD de Chico, com seu nome, trouxe coisas bonitas como Sinhá e Essa Pequena, mas é engraçado como seus defensores foram obrigados a argumentar que na primeira audição o prazer não é dos maiores... Caetano encerra o ano com uma belíssima canção, Recanto Escuro ("É fácil: nem ter que pensar/ nem ver o fundo"), no CD novo de Gal Costa, canção que justifica as demais. A versão ao violão, que ambos apresentaram no Programa do Jô, é melhor que a do disco, com arranjo feito de um pulso eletrônico e algumas inserções instrumentais que pouco somam. Mas que melodia!

Num campo menos acessível, tivemos CDs de Danilo Caymmi e André Mehmari, com sofisticação harmônica hoje rara. Da nova geração, intérpretes como Marisa Monte e Maria Rita diluíram ainda mais seus estilos, e compositores como Tiê e Marcelo Camelo também só pareceram se repetir num registro mais aguado. Não temos no atual momento nada que se possa comparar com nomes como Tom Waits e Elvis Costello, mesmo que estes tenham lançado CDs sem nada muito especial (respectivamente, Bad as Me e National Ransom), o que também se pode dizer de Radiohead ou Madeleine Peyroux. E muito menos temos uma novidade do porte da inglesa Adele, cujo segundo CD, 21, a fez de longe o destaque do ano. Suas canções e sua voz têm qualidade e impacto, daí seu sucesso com os mais diferentes públicos e críticos.

No mais, foi um ano dominado mais por eventos (de todos os gêneros, com o calendário brasileiro cada vez mais cheio) do que por criações. Vi poucas e boas apresentações, como as de Paul McCartney, Ute Lemper e a mais antológica de todas, de Keith Jarrett, agora entesourada em CD. Na chamada "erudita", vive-se ainda basicamente do passado, mesmo que reinventado como as Suítes para Violoncelo de Bach por Dmitri Goudarolis. De brasileiros, claro, Nelson Freire não faltou de novo, e seu Liszt tem belezas como as Consolações. Estamos consolados.

Cadernos do cinema. Meia-Noite em Paris, de Woody Allen, é o filme mais satisfatório do ano. Muita gente não percebeu que ele é muito mais que um exercício de nostalgia com a capital francesa como cartão-postal, mas uma ironia ao mundo americanizado de hoje em que aparência e consumo são os únicos assuntos. Outro filme que não menospreza a inteligência do espectador, mesmo que ele não o mereça, é A Pele Que Habito, de Almodóvar, um Hitchcock à latina, de grande apuro visual. Não troco esses dois filmes pela falsa profundidade de Melancolia, de Lars Von Trier, e Cópia Fiel, de Abbas Kiarostami. No Brasil, não tivemos nada que combinasse talento e sucesso, a começar por tentativas de "blockbuster" como Bruna Surfistinha. Não foi um grande ano.

Depois da safra do Oscar, vencido por O Discurso do Rei, (e na categoria de filme estrangeiro pelo forte dinamarquês Em Um Mundo Melhor), e de relativas injustiças cometidas contra A Origem e Bravura Indômita, o cinemão hollywoodiano pouco nos deu também. A Árvore da Vida foi muito comentado, mas é um videoclipe criacionista, de roteiro confuso, limitado à beleza das imagens. Prefiro Planeta dos Macacos, não apenas por seu entendimento de Darwin, mas pela vitalidade narrativa. Crianças e adolescentes se divertiram mais, ainda que com sequências de sucessos (Harry Potter, Piratas do Caribe, Carros, Kung Fu Panda), e o destaque não foi uma sequência: foi Rio, do brasileiro Carlos Saldanha.

De resto, vimos filmes bonitinhos e só, como Inquietos, de Gus Van Sant, e agora Um Dia, dirigido mais flacidamente por Lone Scherfig, baseado no romance de sucesso de David Nicholls, com Anne Hathaway. O filme poderia se chamar A Perdida e o Pavão", pois os personagens no livro são mais interessantes. Para variar.

A arte de ver. Nas demais artes, não fui tão assíduo, mas desconfio que as opções são menos numerosas mesmo. As exposições de Saul Steinberg e M.C. Escher, por exemplo, foram muito bem-vindas, ainda que a segunda bem mais completa. Ambos levaram as artes gráficas - os jogos de espelho, a força das linhas - a outro patamar, lá onde as classificações caem por terra. Já a mostra na Bienal com nomes antes pouco vistos no Brasil, como Damien Hirst, e os trabalhos de Olafur Eliasson para a Pinacoteca cumpriram antes uma função informativa do que um deleite estético. Eliasson tem coisas muito melhores. Para mim, que estou saudoso de escrever sobre grandes exposições, o ano foi sobretudo marcado pela perda de pintores como Lucian Freud e Cy Twombly.

Também nas artes cênicas estive um tanto ausente, mas gostei da peça Pterodáctilos, dirigida por Felipe Hirsch, e de mais um trabalho caprichado do grupo Corpo, Sem Mim, em cima das cantigas de Martin Codax. Por incrível que pareça, a TV teve performances memoráveis em séries históricas como Game of Thrones e Os Bórgias, ainda que esta tenha desaparecido do canal TCM. Continuei acompanhando O Império do Contrabando, com o ótimo Steve Buscemi, e também Fringe, esta também maltratada pela Warner local, que vive reprisando episódios fora da ordem. Já a TV brasileira teve um ano de mesmice.

Rodapé. Acrescente à lista de melhores livros do ano que fiz na semana passada, entre outros (sim, vou ler o novo Umberto Eco), O Rio É Tão Longe, de Otto Lara Resende (Companhia das Letras, organização Humberto Werneck). São suas cartas a Fernando Sabino de 1944 a 1970. Escritas sem parágrafos como num jorro de associações e evocações, lembram muito o Otto real, coloquial, embora ao vivo fosse mais divertido ainda. Dele sempre se disse que era melhor conversando do que escrevendo, então é natural que surja a opinião de que essas cartas são sua melhor obra. Mas ele escrevia divinamente, e quem leu seus contos, seu romance O Braço Direito e suas crônicas, como a agora reeditada Bom Dia para Nascer (em número bem maior do que o original), sabe do que estou falando. E quem escreve bem o faz em qualquer gênero, de um bilhete ao porteiro até um tratado de filosofia.

Otto jamais quis publicar essas cartas, mas as escrevia com aplicação literária, digamos; tanto é que agradece a Sabino em 19 de agosto de 1964 por finalmente escrever "uma carta de verdade, pra valer" (e o volume nos deixa frustrados por não ler as respostas de Sabino, que comparava Otto a Mário de Andrade como os grandes epistológrafos brasileiros). Os encantos para o leitor são muitos, por mais que se estranhe a escassez do tema político num período tão complicado. Adido em Bruxelas em Lisboa, Otto também fala pouco sobre a cultura de onde está, muito mais ansioso em ter de Sabino notícias dos amigos. Este é um dos maiores atrativos, ratificar o privilégio dessa geração de conviver entre si: morremos de inveja dos encontros de Otto com Rubem Braga, Nelson Rodrigues, Guimarães Rosa, Antonio Callado, Vinicius de Moraes e, claro, a turma formada por Sabino, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino... Facebook para quê?

Também vemos um Otto nada diplomático, xingando o crítico Wilson Martins, tendo bloqueios criativos e se queixando dos afazeres, exceto os familiares, ele que era pai de quatro filhos e marido amoroso. E, por trás do humor e da religiosidade, sempre sentindo um gosto de jansenismo: "Vejo meu nome impresso, me dá um aborrecimento de morte, uma contrariedade sincera, profunda e estapafúrdia, parece acusação pública, prestação de contas, julgamento. Por isso resumi meu nome de Otto Oliveira de Lara Resende para Otto Lara Resende, agora para Otto Lara e já estou me assinando O. Lara, amanhã começo a assinar O., depois engulo esse O. com pontinho, como numa dessas mágicas de circo, sumi, desapareci (...)". Não, não desapareceu; está vivíssimo em todos os seus textos.

Por que não me ufano

Crescimento do PIB para 2011 previsto em 2,8% até por fontes oficiais. Mas, claro, a culpa é da crise dos brancos de olhos azuis...

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